Marciano Vasques
REFLEXÕES NA FORTALEZA DA SOLIDÃO
Como é possível que a traição não interfira na alegria e na sensação do dever cumprido? Como é possível que a traição não adquira importância fundamental na seqüência dos atos de uma vida? Como é possível que o espírito gregário, o coletivismo, a circunstância grupal não revele cruamente o sentido da traição?
O espírito gregário, a necessidade de estar em grupo, a fortaleza dos que se juntam em nome de objetivos e ideais, dos que em grupo promovem seus abandonos plenamente justificados, seus deslumbramentos, suas falsas vitórias, suas aparentes felicidades.
Sim, há que se manter íntegro, há que se manter solitário, se for o caso, há que se buscar incansavelmente a confiança, há homens confiáveis e há mulheres confiáveis, há que se ter o cuidado, o zelo, a atenção redobrada, para que não seja a nossa consciência perfurada pela implantação óbvia de estereótipos, pois se não houver esse cuidado, daqui a pouco estaremos pronunciando que todo político é igual, que todo professor é igual, que todo poeta é igual, e por assim adiante.
Não somos iguais. Temos as nossas sagradas diferenças, edificarei a minha fortaleza da solidão e nela receberei os sinceros de coração e estarão na vida, na alegria simples de não terem passado por cima de quem quer que seja como um rolo compressor. Ninguém precisa anular ninguém, ninguém precisa trair ninguém.
Quem quiser que tenha o direito de se organizar em grupos, em projetos, em movimentos, afinal cada qual toma as rédeas de seu viver em suas mãos, cada qual sabe a extensão de seu próprio coração, cada qual tem a audição apurada de acordo com a sua consciência, para o eterno canto das sereias. Sempre teremos as opções de escolha, entre as sereias e as cigarras. Mas que cada um reflita sobre as motivações submersas da necessidade de se estar em um grupo.
A traição, o sentimento de estar em grupo, a condição de trair, a capacidade fértil de isolar o outro — que precisa ter os olhos arrancados. Como se tornou possível a ausência de peso no coração dos que traem?
O deslumbramento, o encantamento, a sensação de consagração que causa entre os iguais, a fartura dos abraços dos iguais, a neblina que só o espírito grupal pode proporcionar, a exuberância dos afetos, o regozijo, o aquecimento que a união pode causar.
Povo unido, poeta unido. É verdade, poeta unido jamais será vencido. A união faz a força, mas a força nem sempre é justa.
Nem serei mais poeta nem menos por estar em um grupo. Da mesma forma, não é o fato de ter privilegiado a escolha da fortaleza da solidão o que me tornará mais poeta. Não somos poetas por isso, por termos escolhidos nossos caminhos da forma como escolhemos. Ninguém será mais poeta ou mais artista por ter escolhido as suas formas de estar no mundo. Ninguém será mais poeta por ter traído.
De que adiantam os e-mails repletos de meus amores, meu grande amor, de que adiantam as palavras amorosas, de que adianta o uso de tal recurso, se o coração não for postado junto? Como as palavras são...
Como as palavras têm, às vezes, a capacidade de caminharem em direção oposta ao sentido natural da vida! A vida não é edificada, não é feita de palavras, mas de ações. Se as palavras são camaleônicas, e até, se isso for conveniente para alguém, capazes de caminhar em direções contrárias ao ato de viver; viva as palavras pelo poder que adquirem, pela capacidade de serem extremamente reveladoras, por revelarem em si, contraditoriamente, o caráter, a natureza das pessoas.
Como já me deixei levar pelas palavras! Como já fui tolo! Ludibriado! Como vivi impiedosamente o poder do encantamento da palavra, sem compreender, e só compreendendo bem depois, que a palavra não está isolada, mas sim, ela está profundamente enraizada na vida, não pode ser desprendida, não pode ser desvinculada da vida, não é um ser abstrato, que nasceu de um toque mágico, a palavra não é solitária, não pode ser compreendida separadamente da vida que a pronuncia.
Da mesma forma que um fenício um dia olhou para o peixe e inventou a letra N, da mesma forma que as escamas do peixe originaram uma letra, e a construção de uma cerca originou a nossa letra H, da mesma forma que o alfabeto nasceu extremamente entrelaçado com a vida, a palavra jamais poderia estar isolada, ser um ser ou um ente desprovido de alma, sendo que tal alma é a vida, que significa: a forma como se vive o articulador da palavra, aquele que a pronuncia.
Usar a palavra é a coisa mais fácil, colocá-la num e-mail então é mais fácil do que sempre foi numa carta de papel, dizer coisas bonitas é naturalmente fácil, há tanta facilidade em nossos tempos!
Já disse inúmeras vezes que não sou nem poderia ser contra a existência de grupos, movimentos e projetos, mesmo porque temos a clara consciência de que a humanidade deve muito ao trabalho em equipe e muitos benefícios humanos foram conseguidos em torno, ou melhor, pela existência do grupo, do espírito coletivo, é um fato pois evidente e inegável.
Mas quantos males o tal espírito gregário nos trouxe! Como o coletivo nubla, como tem o poder de entorpecer a mente!
Só o coletivo admite, só ele favorece, e só ele é responsável pelo bélico poder da mídia, só o coletivo é responsável pela impossibilidade de outros poetas penetrarem em determinadas páginas.
O ser humano se reparte em dois, um é o individual, outro, o coletivo. É triste, mas é isso.
Em poesia, em literatura, em cultura, quando há um grupo, um movimento, um projeto que envolva muita gente, quando muitos se unem em um movimento, certamente alguém estará de fora. Mas isso não quer dizer que necessariamente um projeto grupal, coletivo, não possa ser bom.
A vida é uma só, e curta. Se cada um adquirisse a consciência da brevidade do seu próprio tempo por aqui, seria mais cuidadoso, mais zeloso, trairia bem menos.
Incompatibilidades convivem perfeitamente em harmonia na mente humana. Discursos contrários às ações do individuo são pronunciados tranqüilamente sem que a consciência seja afetada ou sequer arranhada.
Quem trai também poetiza, quem engana, quem isola também se arvora no direito de ser chamado de poeta.
Como é aparentemente gratificante a convivência com os opostos! Como é aparentemente produtiva a convivência com as incompatibilidades entre o mental e a ação concreta!
Como é fácil trair! Não é preciso nenhum aprendizado, nenhum curso. Qualquer um pode trair e — essa é a gravidade!— seguir poeta, seguir artista. mas podem estar confusos entre as sereias e as cigarras.
Que continuem os grupos, os movimentos, os projetos, que continuem as equipes, as agremiações, e que sejam destacadas, que apareçam claramente, que não sejam confundidas as que promovem o crescimento humano com as que são apenas vitrais, formas encontradas pelos que, na carência de autenticidade ou vigor poético, na carência de talento, precisam da união, do aparato do grupo, da implantação do coletivo, para justificarem as suas forças.
Trair, trair, trair. O que realmente fere é a traição. A traição é a dor maior. A traição só ocorre quando há confiança total. Quando você descobre que o alguém em quem você tanto confiava é igual aos outros.
Poeta trai, artista também, todos são capazes de trair, uma pessoa que faz doutorado também tem a capacidade de trair, e que a melhor maneira de traição ser autenticada é a inserção no coletivo. A chancela do grupo é a garantia da qualidade de traição. O grupo minimiza e dá cobertura ao ato individual, que tende a ser esfarelado no coletivo. Antes de tal descoberta, vivia o encantamento da poesia, vivia num mundo ilusório, era prisioneiro das ilusões. Não havia optado conscientemente pela solidão.
Como se juntam os iguais! Como é gratificante trair quando se está no coletivo.
A arte, ou melhor, o artista reproduz o político, assim como o professor reproduz a sociedade, reproduz o padrão cultural da sociedade na qual ele está inserido. Os que escapam são colocados num isolamento ou se isolam por vontade própria.
Geralmente a falta de talento é direcionada para o coletivo. A falta de criatividade é camuflada nos grupos, alguns projetos são máscaras, são maquiagens, são formas de camuflar a ausência de talentos. A união faz a força. Se isso é bom e necessário em certas circunstâncias (numa tragédia, por exemplo, em que a força da solidariedade só pode ser coletiva), em outras, como é temerosa!
A união faz a força e diante da força eu me calo. Da fortaleza da solidão observarei alguns poetas e artistas com suas vitórias.
Em outras fortalezas da solidão, outros estarão produzindo e encontrando forças, não na união, mas na própria traição da qual são vítimas. Se eu não tivesse sido traído não encontraria tanta força para continuar, e cada vez mais acreditando no meu caminho.
Angela Leite de Souza