Sábado, 31 de Janeiro de 2009
Maurício Veneza
Anna Claudia Ramos
Maurício Veneza entrevista Anna Claudia Ramos.
1) Uma das perguntas mais frequentes a que temos que responder em eventos e palestras é a famosa "Como você cria as histórias?". Como acredito que a função do escritor de ficção não se esgota na criação do enredo, vou um pouco mais além: como você define a forma narrativa, como escolhe as palavras, as frases, a ordem dos eventos, como sabe que o texto está pronto?
Bem, vamos por partes, porque você me fez muitas perguntas (risos). Em primeiro lugar gostaria de dizer que os processos criativos são sempre singulares. O que serve para a criação de um texto não necessariamente serve para outro. Comigo as coisas nascem de formas diversas. Às vezes é um tema que me chega primeiro, outras vezes uma personagem, ou uma cena. Defino a forma narrativa a partir do que se desenha em mim. Vou te dar um exemplo. Meu texto A história de Clarice começou com uma idéia. Eu queria fazer uma homenagem aos livros que marcaram minha infância. Separei todos e passei dias olhando para cara deles na esperança que me contassem alguma história. Depois achei que trabalhar com todos seria excessivo e escolhi três, sendo um deles o principal, que é A Bolsa Amarela, da Lygia Bojunga. Passei um tempo pensando na história que queria escrever. Até que uma história começou a se delinear. A idéia era trabalhar com o abandono de uma criança. Os livros iriam mudar a vida dessa criança. Resolvi fazer uma coisa que nunca tinha feito antes. Subi para Nova Friburgo, uma cidade que fica na serra, aqui mesmo no Rio de Janeiro, e me tranquei por alguns dias, absolutamente sozinha, e escrevi a história. Claro que eu já vinha amadurecendo muita coisa em mim. Quando subi para lá, reli os livros e depois sentei e escrevi sem parar durante quatro dias. Eu planejei algumas coisas, como nomes das personagens e como eu queria começar. O resto foi me chegando à medida que eu escrevia. Foi um processo muito forte. Engraçado, porque Nova Friburgo é uma cidade que faz parte da minha infância, na verdade da minha vida, então, escrever esse livro lá foi muito simbólico. Nunca tinha escrito uma história desse tamanho em tão pouco tempo. Muito menos uma história tão forte e tão diferente. Uma curiosidade é que eu escutava sem parar uma música chamada December, do George Winston. Uma música que mexeu demais com minhas emoções e me levou cada vez mais para dentro da história. Aliás, isso é uma coisa que sempre acontece, elejo uma música (ou um CD inteiro) para cada livro que escrevo. É como se a música me fizesse entrar mais fundo na história. O resultado de todo esse processo poderá ser conferido no livro A história de Clarice, que será lançado pela Editora Projeto em junho. Na verdade eu poderia contar mil coisas sobre o processo de criação dessa história, mas não é o caso, senão ficaria escrevendo páginas e páginas (risos), por isso, queria terminar contando que acredito que criamos as histórias a partir de algo que desejamos muito contar. Algo que nasce em algum lugar misterioso dentro de nós e que vamos descobrindo aos poucos. E trabalhando muito para alcançar uma forma bacana. Trabalhando cada palavra, cada ponto, até achar que está pronto. É que enquanto o texto está em nossas mãos ficamos tentados a mudar alguma coisa. Mas, no fundo, um dia sentimos que é hora de colocar o ponto final.
2) Tenho ouvido comentários e críticas que dizem que o texto do livro infantil e juvenil brasileiro está estacionado. Em outras palavras, cresce o número de autores, mas não há inovação, não surge algo que represente avanço ou mudança significativa em relação ao que já estava sendo feito nas duas últimas décadas. O que você tem a dizer a respeito?
Olha, acho isso muito estranho, porque percebo mudanças sim. Quem diz que não há avanços não deve estar acompanhando tão de perto a produção de LIJ. Até porque, para alguém falar algo desse porte deve, no mínimo, estar com as leituras em dia. O que é quase impossível, pois a produção de fato aumenta cada ano que passa. Talvez eu entenda que digam que não houve algo novo para contestar, como os autores que surgiram na década de 1970. Eles tinham a ditadura não só para contestar, mas tiveram que ser hábeis para driblar a censura e fizeram isso de forma maravilhosa. Mas de lá pra cá surgiram bons autores de texto e tivemos avanços maravilhosos dos autores de imagem. Os ilustradores deram um salto qualitativo incrível. A produção gráfica dos livros também deu um salto. Talvez esteja na hora de reavaliar algumas questões que empatam a vida de muitos autores de texto (e até mesmo de imagens) hoje em dia, que é a questão do politicamente correto. Quando surgiram os Parâmetros Curriculares e os Temas Transversais, me parece que houve um erro de interpretação por parte de algumas editoras, que começaram a querer que os autores produzissem livros politicamente corretos com receio que o MEC não comprasse os livros e com receio da aceitação nos livros nas escolas. Mas o próprio MEC deixou claro que privilegia o literário em detrimento do didático na escolha dos livros que adquire para seus programas de compras governamentais. Acho que está mais do que na hora de se criar uma grande campanha elucidativa sobre o papel da literatura na formação de um ser humano mais completo. A própria AEILIJ já vem fazendo uma campanha sobre a necessidade de existir um lugar especial para a literatura na escola. É importante que todos os envolvidos com livros para crianças e jovens entendam bem o papel da literatura e não tenham medo dos livros e permitam que estes sejam cada vez mais literários e não didatizados ou politicamente corretos, que é uma censura velada muito ruim para quem produz literatura. Enfim, o tema é longo e vale uma bela discussão, mas que seria ótimo que a liberdade de criação nunca tivesse deixado de existir, ah! como seria! Imagine não nos preocuparmos se podemos ou não criar uma cena de beijo (ou algo mais polêmico), ou se podemos ou não usar determinada palavra ou abordar os temas de forma mais profunda sem receio que a editora não edite, o colégio não compre, o pai não deixe o filho ler... Imagine que beleza!
3) Na literatura brasileira tivemos algumas experiências de obras coletivas, com autores consagrados escrevendo partes de uma mesma história (só para lembrar: "O Mistério dos MMM' reuniu Jorge Amado, Guimarães Rosa, Rachel de Queiroz e outros, num único romance de um gênero considerado menor, a história policial; do mesmo modo, "Pega pra Kaput" reuniu Luís Fernando Veríssimo, Moacyr Scliar e outros). Na literatura infantil e juvenil conheço apenas o "Ekoaboka - Jornadas na Amazônia”, que você coordenou e escreveu em parte. Pretende repetir a experiência?
Maurício, eu já repeti essa experiência. Na época que escrevemos Ekoaboka, jornadas na Amazônia eu coordenava duas turmas de oficina literária no meu Atelier. Em ambas as turmas as alunas já estavam comigo há alguns anos. O processo do Ekoaboka começou e logo em seguida vi que ia dar certo e fiz uma proposta de trabalho semelhante para a outra turma, que acabou embarcando na idéia. O processo criativo foi um pouco diferente, mas também escrevemos o livro juntas. Em Ekoaboka cinco autoras escreveram a história. Nesse outro, quatro. Escrevemos e deixamos o texto parado durante uns quatro anos. No final de 2008 resolvemos fazer uma super revisão no texto. Engraçado que só agora me dei conta que quatro autoras esperaram quatro anos para revisar um texto... Estamos fazendo a revisão no momento e pretendemos estar com tudo pronto até o meio do ano. Depois apresentaremos a uma editora. Aí sim, o processo estará completo e teremos repetido a experiência completamente. O nome do livro eu ainda não vou contar, prefiro deixar um mistério por enquanto. Mas desde que Ekoaboka foi lançado e começamos a visitar escolas, os leitores andam pedindo uma nova versão do livro, tipo Ekoaboka 2. Mas isso já é uma outra história. Quem sabe escrevemos a continuação das jornadas amazônicas?
4) Bote a boca no trombone: reclame, desanque, elogie
Sempre pensei que quando eu fosse participar de um vice-versa eu ia querer reclamar de alguns contratos que possuem cláusulas contratuais abusivas, como no caso das cláusulas que dizem que a editora tem direitos até sob as mídias que um dia serão inventadas... Ou iria querer reclamar de atraso de pagamentos de direitos autorais, essas coisas que todo autor sofre ou já sofreu alguma dia na vida. Mas desta vez resolvi elogiar, porque acho que estamos sempre colocando a boca no trombone para reclamar, mas acho que vale botar a boca no trombone para elogiar quando nos deparamos com alguma coisa boa. E em dezembro de 2008 me deparei com um dos contratos mais honestos que já assinei até hoje. Isso me chamou a atenção. Porque é um contrato que se restringe a edição do livro, como deve ser. Um contrato super respeitoso ao autor. Por isso, optei por elogiar esse contrato que é da Editora Projeto. Parabéns para a editora!
Anna Claudia Ramos entrevista Maurício Veneza.
1) Você começou sua carreira como ilustrador, ilustrando livros de outros autores. Como foi que surgiu a vontade de começar a escrever suas próprias histórias?
Respondo com o título de um livro seu: “Não é bem assim a história”. Na verdade, o texto de ficção já fazia parte do meu trabalho antes que eu aportasse em terras da literatura infantil e juvenil. Embora minha passagem pelas histórias em quadrinhos tenha sido curta e inexpressiva, foi uma experiência de texto e imagem anterior aos livros infantis. A primeira história em quadrinhos que publiquei, assim como a maioria das que vieram depois, já trazia roteiro de minha autoria. Na época, era comum que eu assinasse os desenhos com um nome e o roteiro com outro. Pois é, agora você me fez pensar: talvez eu tenha sido a única “dupla de um só” da HQ brasileira...
Quanto ao livro para crianças, meu primeiro texto já tem mais de vinte anos de publicação. E continua sendo publicado até hoje, sem nenhuma mudança na edição. O fato de que eu tenha passado a me dedicar à literatura infantil e juvenil com exclusividade nos últimos onze anos pode levar alguém a pensar que comecei a escrever neste período. Mas a história é bem mais longa e antiga. Acho que a vontade começa mesmo com meus pais, gente do interior, que gostava de contar – e ler – histórias para um menino que gostava de ouvi-las.
2) Claro que a clássica pergunta sobre processos criativos não poderia ficar de fora. Como é seu processo de criação? O que nasce primeiro: o texto ou a imagem? E existe alguma diferença entre ilustrar livros de outros autores e livros de sua autoria? Mas sei que nem sempre você ilustra suas próprias histórias, então, como é ver um livro seu ilustrado por outra pessoa?
O texto sempre me vem primeiro (tenho apenas uma exceção, o livro “CLIC-CLIC, a Máquina Biruta do Seu Olavo”). Meu processo de criação como escritor é simples e repleto de incertezas. Costumo dizer que é semelhante ao trabalho do garimpeiro que fica com sua bateia procurando diamantes. Pode encontrar algum ou passar a vida inteira sem achar nada. São duas possibilidades. Mas se não se dispuser a procurar, a primeira possibilidade deixa de existir. Não vai achar sequer areia, quanto mais diamante. Daí, estou sempre procurando. Olhos abertos, ouvidos atentos, muita disposição para errar, faço centenas de anotações, que, na maioria das vezes, vão dar em nada. Deste amontoado tento tirar alguma coisa que possa ser desenvolvida. Algumas destas anotações levam muito tempo a encontrar seu destino (muitas vezes é a lixeira), é como o processo de amadurecimento de uma fruta. Há as que caem verdes do pé, outras apodrecem e nunca são aproveitadas... Uso também o método de imaginação especulativa, que é útil para todo mundo. Começa com a pergunta “E se...?”. E se o macaco fosse capturado pela onça? E se o mundo fosse acabar na semana que vem? E se o menino se apaixonasse pela mãe do melhor amigo?
Para a criação das ilustrações, o processo difere, já que parto de alguma coisa já estabelecida. O clima, a intenção do texto, é o que determina (mais que cenas isoladas) o tom das ilustrações, o tratamento, cor, composição e tudo o mais. Enfatizo sempre a questão da pertinência, da adequação das imagens à proposta do texto. Sem que isto signifique subordinação, é importante lembrar. Não considero a beleza uma qualidade prioritária. O mais belo desenho do mundo pode ser inteiramente inadequado a um determinado texto. Sei que esta é uma postura praticamente solitária...
A maior diferença entre ilustrar livros com textos meus ou de outros autores é que, nos que escrevo, o escritor nunca reclama do resultado... Brincadeira, talvez reclame até mais. Quanto a ter livros ilustrados por outros artistas, é uma bela experiência. Ensina bastante sobre as diferenças entre se estar numa ou noutra posição. Como as parcerias são montadas pelas editoras (no dizer de uma jovem editora: “Nós montamos Frankensteins”), prefiro não acompanhar o trabalho do ilustrador. Além de eu não ser uma pessoa controladora, temo que, acompanhando ou sugerindo coisas, possa vir a tolher as iniciativas dos parceiros, que, estando à vontade, podem chegar a soluções melhores que as minhas. É apenas uma preferência, que não invalida a parceria em outros moldes. É também o modo de trabalhar que prefiro quando estou ilustrando textos de outros escritores. Há um livro do nosso querido Pedro Bandeira, em que a protagonista escreve um texto e depois fica olhando por cima do ombro do pobre ilustrador, dizendo “Eu quero que desenhe isto, agora eu quero que desenhe aquilo”... É um retrato perfeito de como o ilustrador NÃO deve ser.
3) Você vem fazendo um bom trabalho na vice-presidência da AEI-LIJ, esteve recentemente representando a AEI-LIJ no Fórum organizado pelo MinC para debater a questão dos direitos autorais. Você acha que a questão dos direitos autorais para escritores e ilustradores melhorou nos últimos anos? Ou ainda existem questões que precisam ser repensadas?
Ih, fiquei vermelhinho! Tudo que estou tentando fazer é acompanhar o restante da diretoria, que é bastante ativa. Embora a maior parte do trabalho seja invisível...
Bem, a lei dos DA é bem recente, completa onze anos neste mês. Neste período, qualquer mudança de situação terá sido originada de negociações entre editoras e criadores. Parece-me que a situação dos escritores não sofreu alterações dignas de destaque. Os ilustradores, graças a muito empenho, conseguiram pequenos avanços. Mas, como estavam em condições bem piores que os escritores, ainda não chegaram sequer a emparelhar. Dois pontos importantes (não exatamente relacionados a direitos autorais) e que têm representado melhora são os contratos que incluem cláusulas que limitam o uso da obra, seja texto ou ilustração, em oposição às ilegais cláusulas de cessão para “qualquer meio existente ou a ser inventado”, e cláusulas que prevêem pagamento a ilustradores com base também (além de um valor inicial) em participação nas vendas.
4) Bote a boca no trombone: para reclamar ou elogiar!!!
A categoria tem muitas queixas, na maioria bem conhecidas. Mas há uma coisa que só é discutida à boca pequena, como se fosse tabu falar abertamente, que são os critérios de avaliação da literatura infantil e juvenil. De um lado temos os que adotam o critério “Diverte & Ensina”, que acham que toda obra dirigida à criança tem que possuir obrigatoriamente conteúdo moral ou didático. Esta abordagem ainda é muito usada nas escolas, imprensa e catálogos de editoras. Do outro, temos pessoas mais especializadas, que conhecem bem o assunto, mas, aparentemente, não conseguem se despir de uma ótica adulta, se despojar das suas “adultices”, como diria a Mafalda. Sempre me parece que se servem de parâmetros de gente grande para gente grande. O problema é que estes critérios passam a orientar os criadores em suas produções. Vejo muitos livros, que claramente não são escritos (e/ou ilustrados) para crianças, serem cumulados de premiações. Depois vem aquela chatérrima reclamação de que “livro premiado não vende”. Algumas introduções parecem teses de mestrado. Alguém quer mesmo que uma criança de oito anos leia aquilo? Santa presunção, Batman! Seria mais honesto se admitíssemos que aquilo está num livro para criança, mas, na verdade, é destinado aos mediadores, à mãe, à professora, ao votante do prêmio X, ao avaliador do programa de governo Y. Porque não é a criança que escolhe o livro a ser adotado, não é a criança que assina o cheque na livraria...
Ainda no mesmo assunto, outra coisa que tem me causado arrepios é quando algum especialista fala em “livros de qualidade para a criança”. Na maioria das vezes, não está se referindo a um texto engenhoso e bem escrito, nem a uma ilustração criativa e bem resolvida. Refere-se às cores e aos papéis especiais, aos vernizes, às capas duras... Dá-se mais importância ao chantilli do que à torta. Passou-se a considerar o luxo uma qualidade em si. Alguns parecem não avaliar o quanto isto aumenta o preço do livro, tornando-o acessível apenas a uma parcela cada vez menor da população. Ou talvez seja mesmo esta a intenção, sei lá. Por mim, não vejo sentido em trabalhar pela formação de leitores e produzir livros aos quais eles não tenham acesso.
Mas nem tudo são queixas: aplaudo a proliferação e popularização de eventos e salões literários pelo país, muito gratificado pela forte presença da literatura infantil e juvenil. Uma das coisas que mais me agradam é que são eventos em que você pode se encontrar não somente com profissionais, mas também com o público. É em alguns encontros com as crianças que meu trabalho, enfim, parece fazer sentido.
Postado por AEI-LIJ-SP
Marcadores: postado por Regina Sormani
2 comentários:
Eduardo Loureiro Jr. disse...
Parabéns por essa bela idéia do Vice-versa. É um prazer ler essa conversa de autores e ilustradores.
31 de Janeiro de 2009 12:19
Jota Silvestre disse...
Maurício Veneza foi um dos pioneiros da história em quadrinhos no Brasil. Quando ele diz que sua passagem por este segmento foi curta e inexpressiva, apenas manifesta seu já conhecido cavalheirismo. Por mim, gostaria de vê-lo de novo na ativa produzindo HQs.
Ótima entrevisa. Abraços a todos.
Jota Silvestre
http://papodequadrinho.blogspot.com
1 de Fevereiro de 2009 00:45
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