MOÇA COM O CORAÇÃO DE GIZ
Eu me lembro...
Chuvosas manhãs, arco-íris brotando, acanhamentos lilases em nuvens dispersas, manhãs friorentas de céu de oliva, sol bocejando...
Lá estava eu, magrinho, corpinho frágil, num caminho suave; quase que beirava o rio, e era tanta poeira às vezes, e ventava, e precisávamos de muita força para segurar os guarda-chuvas, e lá ia eu, e qualquer chuvisco bastava para encher os olhos de imensidões.
Varais que passavam, com os coloridos da pobreza nas roupas que valsavam. A terra vermelha orvalhada. Das lisas folhas as gotas despencavam no abismo e beijavam o sol, dissolvendo-se no vertical mergulho.
E os quiabeiros, as quaresmeiras, os eucaliptos, o poejo, o anis, a ponte frágil de madeira, riscos de pardais nos capinzais, cerrações matinais, risos rasos, rosas, rezas, ais.
Quem passa de carro apressadamente pela Avenida Tiquatira nem sequer pode imaginar.
Numa delicada algazarra sentávamos no banco de madeira. Tudo era madeira.
E eu a contemplar, como se estivesse numa nave de Flash Gordon, o lápis vermelho, retangular, forte, audacioso, e o lápis preto, e o mata-borrão, e o vidro de tinta, e ele, o caderno. Aberto diante de mim, esperando pela viagem. Que felicidade!
Então ela surgia. E diante da lousa ensinava os primeiros passos da ternura, do bem querer. E eu, resfriado, atritando as mãos envoltas numa luva de lã, apertando o lápis...
Ela riscando os gizes. Talvez o seu coração fosse de giz. Sim, só podia ser.
Os planetas girando ao retor do Sol, que, imagine, é uma estrela.
– Sim, ela disse que é uma estrela...
– De quinta grandeza.
E os números...Quanta elegância! O traçado do 2, do 5. E escrever "cinco", com cinco letras. Um momento tão marcante. Aquele menino que corria solto entre os gansos que atravessavam as ruas, e perdia-se de felicidade nas nódoas das manhãs, a fugir nos braços do vento e subir nos caules descascados das goiabeiras, no mormaço, já conseguia escrever "cinco". Que emoção. – Verdade! Eu consigo, pai! Ela ensinou hoje.
E a primeira letra? Voando, bêbada, uma batata, comeu fermento. Que letra enorme, torta, não cabe no espaço de duas linhas. Não cabia, veja como ficou bonita, cada vez melhor. Nem parece mais aquela letra desengonçada, de lápis afundando como se quisesse furar a folha do caderno.
E cada letra mais curiosa. O F, muito charme, o L, exagero de lindeza, o M é do macaco, o N é do navio. Pode ter mil coisas: mola, mula, mala, mole, mas é do macaco. Pode ter nada, Neide, mas é do navio. Neide?
Seria esse o seu nome? Talvez tenha sido esse o seu nome. Um professor chamava-se Aldo, foi com ele que aprendi que a gentileza e a atenção são tesouros que o tempo jamais deverá tirar de nós.
Mas as letras, cada qual com sua curiosidade. Veja o X, tem alguma mais metida? Mais exibida, gulosa, mais cheia de si? Claro! Tem vários sons. Exato! É isso mesmo. Enxame, e táxi. Ora, pensa que para menino ou menina isso é coisa de assustar? Vai logo uma dezena: xarope, enxada, caixa, exame, tóxico: isso é coisa venenosa, que pode ter numa laboratório ou num alimento envenenado...
E o H? Mudo, emudecido que só ele. O H não tem som. Quando lemos, tanto faz hoje como oje. Mas para escrever sem ele, nem pense que ora é hora. Lá estava, soberano, a oitava maravilha da cartilha. Ele, o mudinho, no helicóptero. Menino já escreve helicóptero. Ora! Ninguém segura mais. Voar é apenas um jeito de viver.
O primeiro helicóptero no azul, entre as nuvens. Tudo que passava entre as nuvens era só para fabricar encantos dentro de meninos e meninas. Balões então, meu Deus!
Certamente foi com o papel de seda de um balão feito na varanda que a cor roxa penetrou em minha alma. Cada cor teve a sua fundação, a sua chegada, e o roxo foi naquelas folhas de seda do balão chamado de "Pião de Bico Torto".
Mas os balões enfeitavam o céu, transgrediam aquele azul, exageravam. Era balão almofada, balão charuto, balão cruz, balão mexerica, balão pião de faixa, almofada de faixa; o céu já era multicolorido. Em junho o azul não reinava sozinho.
Um dia extraordinário, que ficou para sempre. Foi naquela aula, quando ela apresentou a mais impressionante novidade. E veio com um nome difícil. Esferográfica. Uma caneta que não precisa de vidro de tinta, nem de mata-borrão. – Uma caneta diferente de todas, pai! Tem que comprar!
O pai havia mandado gravar o meu nome com ouro na linda caneta que eu usava. Por isso ouviu desconfiado a história da esferográfica. Como um homem faz isso? Como é possível que dê para um menino uma caneta tão elegante, tão valorosa, com o nome dourado, folheado, estilizado? O amor encontra mil formas, mil tentáculos para se manifestar.
A fatia de pão tão generosa com aquele exagero de manteiga sendo oferecida pela mãos da avó Conceição numa tarde em Ribeirão Pires, e meus olhinhos percorrendo as veias que saltavam, as manchas solares de sua idade naquela mão estendida. Como é possível que alguém não repare no amor que busca se expressar assim nesses gestos? Que inveja causei quando surgi na sala e em vez de mostrar o pião e as figurinhas, mostrei a caneta com meu nome gravado a ouro.
E o tempo foi passando e mal me dei conta aprendeu a voar, numa velocidade que impressionou quem admirava o voo da libélula, da varejeira no reflexo azul e verde do sol ou erguia os olhos para o céu num entardecer que escoa ainda entre os meus dedos.
O tempo aprendeu a voar no cabresto do meu relógio de pulso.
A imaginação desembestada no galope da ventania mal podia imaginar uma coisa assim.
E a escola, que nem cerca tinha, nela ergueram muros altos e de concreto. E o aviãozinho de papel percorreu geografias, mas ela não se foi.
Eu me lembro sim daquela moça, pudesse vê-la um dia com seus cabelos brancos, com dificuldade de andar, já quase sem enxergar, e então, eu, a lhe dizer: – Que importa que não se lembre de mim? Foram afinal quase mil alunos nas suas salas de aula!
O que importa mesmo é o abraço que eu daria, o beijo.
Ela nem sequer poderia supor a felicidade que causava. Isso aconteceu lá, naquela escola de madeira, que hoje é de concreto, cercada e protegida por muros, e ninguém tem tempo de observar, pois a velocidade tomou conta de tudo.
Foi lá onde tomei pela primeira vez aquele chocolate quente, aliás, parecia que o mundo era feito de chocolate. Nos meus aniversários, havia sempre o bule de chocolate, e também, claro, o suco de groselha.
Lá ouvi pela primeira vez o nome de um homem que havia escrito bonitas histórias para crianças, e lembro da capa de um enorme livro: havia um rinoceronte e aquela boneca de pano que, incrível !, não parava de falar. Algo novo estava acontecendo em minha vida e ainda bem que menino esperto não deixa escapar uma coisa dessas.
Sim, eu me lembro daquela moça. Sei que não a encontrarei mais por ai com seus passos lentos, mas talvez seja por isso que vivo a sorrir assim meio "macabéia" para todas as velhinhas que encontro pelas ruas.
Quem sabe um dia a escola irá evoluir mais, e ter uma sala onde estarão expostos os quadros com o rosto de cada professor. Pelo menos os que alfabetizam, não que os outros não sejam importantes. Seria o memorial de cada escola. Escola com nome de professor já é uma coisa boa, pois, infelizmente tem ainda escola com nome até de general, porém o rosto de uma professora, de um professor, isso deveria ser para sempre.
Quem sabe que com essa modernidade toda, tal coisa possa possa estar num espaço virtual, onde cada menino que cresceu poderá sempre que quiser rememorar quem lhe ensinou os primeiros traçados .Tenho certeza de que até os políticos iriam melhorar.
Mas aquela moça está por aí. Isso eu sei.
Está por aí, justamente nessas escolas de muro alto de concreto, está por ai transmitindo sonhos e ensinando traçados numa infinita trança de letras, num caminho nem sempre tão suave, mas transbordante de ternura, de zelo, afago e apego, mesmo com a voz alterada, tendo algumas vezes até que quase implorar para ser ouvida, mas ela está por aí, cerzindo as mágoas, e tecendo o seu coração de giz, tentando compreender a alma do tempo.
MARCIANO VASQUES
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