sábado, 4 de dezembro de 2010

SP: Quintas (37)

Marciano Vasques
BAÚ DA INFELICIDADE


O baú da infelicidade do povo é enorme. Abri-lo e denunciar a sua existência é imperativo em qualquer consciência. Ocultá-lo, como se fosse possível fazê-lo por muito tempo, é asneira.

Baú da infelicidade, símbolo da gente sofrida que margeia os rios poluídos das periferidas, gente sofrida que espera nas intermináveis filas, almas abandonadas comprando alegrias nos camelôs, sobrevivendo teimosamente, gastando o sofrido dinheiro nos gigantescos hipermercados, enriquecendo, com boa fé e coração simples, empresários, bispos e figuras televisivas.

Baú da infelicidade: abri-lo é expor a melodia plangente do vento que testemunha o sofrimento que viaja de ônibus e de trem, com a alma saturada, entupida de rezas e promessas.

Alma exposta nos mangues, favelas e charcos. Lambuzadas de sonhos e dores, rasgadas nos varais.

Gente de sulcos profundos na face empoeirada, mulheres nos postos de saúde, com seus filhos. Mães que jamais dançaram para as suas crianças, apenas cuidaram das fraldas, da chupeta e as levaram aos pediatras, sem compreenderem que o amor estará completo no sorriso e na palavra. Que a criança é verbívora, a sua oralidade complementa a necessidade amorosa do ser humano.

Gente nas feiras, nas fábricas, nas creches, nos hospitais, com suas tragédias, seus dramas, suas dores urbanas. Mães vendendo por 10 reais o leite que a criança recebe na escola municipal, outras entregando na esquina para os traficantes, para ajudar a pagar a dívida do marido. Gente ouvindo as músicas da rádio, assistindo à televisão, decorando respostas na esperança do show. Gente entrando num templo, ouvindo os gritos da insensatez, gente perdendo a independência mental, mas nunca a fé. Gente no final da feira e as folhas da beterraba, e as folhas da cenoura e as folhas da couve-flor.

O baú da infelicidade é outro, é o baú do sofrimento, das esperanças perdidas, do medo, da incerteza, do preço abusivo do pão.

Baú da infelicidade, meninas violentadas em fazendas e campos e partindo para a cidade grande, sem futuro e sem possibilidade de erguer o próprio destino. Prostitutas: longe do universo encantado da literatura de Jorge Amado, mas nas ruas da cidade devoradora.

Cidade que come a menina sonhadora, que transforma em puta a gata borralheira da periferia, que indefesa ouve palavras de cristais em bocas que tragam a fumaça poluente da cidade.

O baú da infelicidade não foi escondido por nenhum pirata e não forma nenhum tesouro, trata-se apenas de uma realidade de arame farpado de quem constrói o país com o seu sangue e entrega o fruto do seu trabalho para o grande magazine, outrora postal de São Paulo, na esperança de um dia ter em casa a felicidade que a propaganda garante.

Meninas esfomeadas entregando seus corpos para homens ausentes, encontrando os benefícios equivocados nos atalhos que transformam a sonhadora em puta.

Gente olhando para o alto tentando se agarrar em fantasias, em superstições, tentando encontrar uma saída, justificando com a sua ingenuidade a sagacidade dos espertalhões e voltando para a casa da mesma forma que o pedreiro volta ao fim do dia para o seu barraco.

Gente no Metrô, teatralizando gestos, mentindo, contando histórias sofridas, arrancando das pessoas ingênuas e das bondosas de coração suas poucas moedas e deixando confusos aqueles que se comovem, mas não sabem mais em quem acreditar.

No baú da infelicidade não há apenas a gente humilde sem saída, há também os que arrancam com as próprias mãos o futuro e saem às ruas em manifestações exigindo mudanças, participando de movimentos e partidos, tentando com a sua luta, benefícios e conquistas para que os filhos possam viver dignamente.

É mais fácil esquecer do que lembrar e facilmente se esquece dos que foram sacrificados com suas vidas para que outros pudessem ter um pouco de paz e liberdade.

No baú, lá no fundo, remexido, está a menina que abortou na favela da zona leste, e a que foi dada pela mãe para o homem do sítio e a do sorriso largo, que foi dada para pagamento de dívida, e a menina sonhadora de namorado estúpido, que sabe cantar a letra rasa do pagode, que mantém nos olhos o brilho diante das mentiras televisivas, e enquanto entrega seus seios em flor para o moço que não a merecia, pensa nas coisas que faria se tivesse dinheiro, e o bombardeio mental que sofre nos cds e programas infelizes de auditório que não suportariam uma auditoria mental com o propósito de limpar a consciência.

Meninas, meninos, moços e moças, mulheres jovens, mulheres velhas, homens abandonados, essencialmente destruídos, homens que como o seu Félix, perderam o melhor de si em empresas que nada compreendem sobre o ser humano. A menina falando de amor numa noite do Brasil para um homem que já nem sabe do que se trata.

O corpo que aparece boiando no rio e a luz que muitos viram na noite anterior lá no alto, no campo. Baú da infelicidade e a falta de dinheiro para o cinema. É melhor ficar por aqui e uma cervejinha e um cigarro.

A empresa que ficou 20 anos com isenção fiscal, vinte anos sem precisar pagar nenhum imposto porque é de um parente do ministro. Baú da infelicidade.

Os ídolos enriquecidos com o dinheiro do povo sofrido, aparecendo na televisão e em encartes coloridos dos jornais fazendo propaganda de marcas e de grandes lojas, vendendo produtos, anunciando carros, extrato de tomate e carnês.

Cantores vendendo suas músicas para paródias musicais em propagandas, traindo assim a alegria e a sincera amizade do povo, e letras que falavam de festas, amores e alegrias reaparecem falando de planos de capitalização ou de temperos, e a hipocrisia mora em mansões distantes do pobre operário, do ajudante geral e da empregada doméstica que gasta o seu suado dinheirinho no Natal para presentear alguém que ama, com um CD.

O baú da infelicidade e artista popular fazendo campanha contra o CD pirata, envergonhando o seu povo sofrido e romântico que não suporta o preço alto nas lojas e compra o CD no camelô para levar para casa um pouco de música e felicidade, e entre as estrelas e os piratas há a insensatez de quem transforma a arte num produto rentável e mercadológico e coloca código de barra com preço inacessível e injusto e depois, põe na televisão, artistas consagrados para defender despretensiosamente os produtos originais das gravadoras sem ao menos tecer umas palavras de apoio ao assalariado que não tem condições de pagar um preço absurdo e desleal para ter em casa os seus artistas queridos.

Artistas galãs em caravanas políticas, apoiando candidatos políticos de duvidosa ética, e engordando suas contas bancárias enquanto a moça sofrida derrama suas lágrimas diante do capítulo do folhetim da televisão, modalidade de diversão que, filha do romantismo, faz concessões ao público: e o que importa é o final feliz na tela.

Baú da infelicidade, quem restituirá o sorriso autêntico no diálogo com essa gente, quem colocará girassóis nas janelas, quem abrirá as cortinas e revelará um mundo de justiça e felicidade?

Baú da infelicidade, empresários, alguns bispos, coronéis, gente erguendo a sua riqueza com este baú, com o baú das favelas, dos negros que sofrem, das mulheres, das crianças que pagam as frustrações dos adultos nos espancamentos, baú da infelicidade na falta de alternativas na vida da lavadeira, da doceira, da empregada doméstica, as circunstâncias que limitam.

Você pode ser feliz, faça isso, faça aquilo, compre um livro de auto- ajuda, baú que não é de espantos, mas de infelicidades, baú triste, de gente que veio do norte e do nordeste, do sul, gente que percorre o país buscando um seguro cais e com a alma impregnada de ilusões, vomita seus ais nos charcos do dia a dia.

Baú de perplexidades!

Nenhum comentário:

Postar um comentário