Nesta edição apresento o trabalho de Anielizabeth, que enviou um ótimo texto que posto logo abaixo, boa leitura.
"A imagem sempre foi algo fortemente presente em minha vida desde a infância, sendo sempre objeto de fascinação e estudo obsessivo, pois sei que o impacto que elas causam em mim, causam também em tantas pessoas, desde tempos longínquos. Mas afinal, que relação é esta de encantamento com a imagem? Esta pergunte orienta meus estudos sobre processo de criação. Conscientemente ou não, o ato de criação de uma ilustração surge de um intenso processo de pesquisa. Além das ‘imagens’ gravadas no arquivo mental de quem cria, há aquelas que surgem de um longo e detalhado processo de construção consciente: de época, lugar, texturas, intenções etc.
Acredito que o livro infantil é uma maneira de documentar a memória iconográfica de uma geração, tanto quanto imortalizar as tendências literárias, sendo a literatura infantil uma poderosa aliada no combate à banalização das imagens e das comunicações tão observadas e atualmente muito comentadas. Assim, acho fundamental que o leitor treinado para ler códigos verbais seja preparado também para ver e decodificar a pluralidade de linguagens que no livro infantil se encontram e se articulam.
O meu trabalho é pautado na certeza que a ilustração, assim como o texto escrito, deleita, comove, educa, uma vez que estimula a imaginação cada vez que se permite dialogar e criar vãos e nuances no livro, cada vez que vai além do que está escrito no texto e se propõe a tocar a sensibilidade e contribuir para a intuição criadora do leitor, capaz de subjetividades desde a mais tenra infância. Mas para que isso seja verdade, é preciso ter sempre em foco a importância de se investir no aprimoramento artístico da ilustração, em detrimento da ilustração mercenária, rápida e sem cuidados na sua estruturação.
A criação de uma ilustração encerra detalhes que são fruto da pesquisa do ilustrador e que se traduzem em imagens que muitas vezes causam deleite no leitor, mas isso acontece de forma tão sutil que o leitor muitas vezes não consegue identificar, de forma intencional, tais elementos. Muitos destes detalhes são colocados de forma intencional pelo criador da obra. Mas, ao contato com o leitor, a obra se recria, dependendo do olhar de quem a vê, numa sucessão de percepções diferenciadas totalmente individuais.
Aqui vão alguns destes detalhes, imaginados por mim, para o livro Double face “Um, dois, feijão com arroz / Que dia é hoje?” escrito pela Sandra Pina e editado pela Zit.Estes detalhes, desvendados, ajudarão o leitor que desejar realizar uma leitura mais analítica desta obra.
O primeiro passo foi sistematizar meu conhecimento teórico sobre as parlendas, suas origens, sua trajetória no Brasil etc. Luis da Camara Cascudo foi leitura essencial e norteadora de todo o processo. Além disso, era preciso estudar o modo de vida da infância no Brasil, desde a colonização, para estabelecer como se deu a formação da nossa cultura e sua propagação."
"Feita esta pesquisa inicial, foi a vez de resgatar minhas memórias afetivas, estabelecendo uma ponte entre elas e o texto que eu iria ilustrar. Refletindo sobre minhas próprias origens, os lugares onde já morei, as brincadeiras preferidas na infância, as atividades profissionais as quais me dediquei, criei um esquema de ilustração em que a ideia principal era montar uma história paralela, retratando brinquedos e brincadeiras da nossa cultura popular, jogando sempre com as parlendas e homenageando famosas cidades históricas, sendo a principal delas, Paraty. A escolha de Paraty deveu-se ao fato de ter estado neste lugar semanas antes de iniciar este trabalho, na FLIP. Escolhi as cores vermelho e verde como as principais numa alusão a Portugal, de quem herdamos as parlendas e mnemonias. Mas dei a estas cores um tom mais fresco, mais ácido e mais vibrante, remetendo ao clima brasileiro. Afinal, as brincadeiras com palavras nos chegaram pelas mãos portuguesas e aqui ganharam novo tom e novas interpretações, graças ao convívio entre luso-brasileiros, indígenas e, mais tarde africanos. Cada um destes grupos contribuiu para a formação das nossas tradições e cultura, ficando o último grupo responsável por embalar nosso sono e introduzir palavras de seus diversos dialetos em nossa língua.
Trabalhei com fitas, passamanarias, sianinhas e galões de algodão, guipures, elementos tipicamente brasileiros herdados das modas e modos lusitanos e franceses. Mais uma vez, os aviamentos saíram da minha caixinha de costura, que guarda preciosidades da minha família e que remetem a minha infância. Aviamentos e tecidos que se vêem no livro já foram vestidos de caipira e de cigana, feitos pela minha mãe para mim e minhas irmãs. Tudo isso incorporado à pintura com tinta acrílica, lápis de cor, lápis cera... Enfim, foi uma festa de técnicas e materiais, simbolizando a mistura característica da formação brasileira."
"Começando as histórias, os personagens são apresentados através de duas brincadeiras: na imagem que se vê o grupo de crianças brinca de adoleta. E é brincando com folguedos, danças e crenças que fazem parte do nosso folclore que as ilustrações vão compondo uma narrativa paralela à narrativa verbal. Personagens do nosso folclore estão presentes: o Mateus, o Bumba-meu-boi..."
"Não posso deixar de mencionar a letra que faz a introdução ao texto de cada página. Letras desenhadas a mão, na tentativa de remeter a simplicidade dos cartazes e outros escritos comuns em diversas apresentações da nossa cultura popular."
"Através do meu trabalho procuro sempre mostrar que o livro infantil se faz da perfeita integração entre texto escrito e ilustração. Um trabalho pensado desta forma estabelece elos entre o verbal e o não verbal, promovendo um sem fim de leituras. Analisar a questão da imagem é algo complexo, que não se encerra só no discurso que envolve a ilustração. Aliás, as imagens verbais existem e segundo Octavio Paz à medida que o acervo visual se aprimora, o acervo verbal sofre desenvolvimento, pois a imagem da palavra se torna cada vez mais complexa. Esta é minha busca incansável: mostrar que a ilustração não deve se prestar a adornar ou traduzir, de maneira simplista a história escrita."
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