Marciano Vasques
ARTESÃO DOS TECIDOS HISTÓRICOS
A inspiração que vem do cotidiano é feita de pessoas que embalam cigarros nas indústrias de fumo, que permanecem em pé durante horas seguidas atrás de um balcão, que vendem balas nos vagões do metrô, água de coco nas praias brasileiras, que lêem os jornais pendurados nas bancas da cidade, que sentam nas escadarias do Teatro Municipal e que infestam o Viaduto do Chá lendo o futuro.
As pessoas apressadas que fingem que almoçam, que atravessam avenidas fora da faixa, que ainda engraxam sapatos na Praça da República, que trabalham em funilarias, em olarias e nas feiras.
Pessoas bondosas e ingênuas que estendem moedas para a mulher que distribui no metrô a foto de uma criança com um texto no verso afirmando que a pequena está com uma doença grave e necessitando de um determinado medicamento ou uma transfusão. A mulher que mostra a foto olha para todos com o olhar estacionado em uma aparente dor distante. Depois, ao sair do metrô encontra-se com as colegas, todas sorridentes e felizes por terem desempenhado cada qual bem o seu papel, algumas com crianças no colo. Crianças emprestadas, que, da mesma forma que a foto possivelmente retirada da internet, comovem os passageiros.
O passageiro que inocentemente dá moedas para a "pobre mãe" ajuda a enriquecer uma quadrilha, mas ele é motriz da história, com a sua força de trabalho. Construindo coisas sem conhecer o todo, falando estilhaços do que sobrou de sua alma no bar com a mesma convicção de um evangélico diante de uma platéia. Artesão, como os homens sem recursos no sistema financeiro, como os vidraceiros, os serralheiros, os que mostram receitas aos farmacêuticos...
Passeatas que cortavam cidades ao meio, gente que ocuparam terrenos, que ergueram acampamentos, que gritaram por postos de saúde, que assinaram manifestos, que lecionaram, intoxicaram a alma com o giz da ternura, com a cal da revolta, gente humilhada nas favelas, sangrando nas sessões de tortura, morrendo aos poucos nas filas hospitalares do sistema nacional de saúde.
Pessoas que timidamente procuraram as escolas para freqüentarem um curso de EJA, mulheres dançando forró nos bailes da periferia de São Paulo, nos bailes funks do Rio, nas gafieiras e no sambódromo.
Com um lápis entre os dedos, uma enxada nas mãos, recolhendo papelão e latinhas, respirando fumaça, alcoolizando o coração, acendendo velas e desfiando rezas e temores.
Em todos os lugares, nos centros educacionais unificados e nas escolas de lata, nas feiras e nos mercados, nos terminais de ônibus, nos portos e nas estações ferroviárias. Onde quer que seja, lá estão eles, cada qual contribuindo com a sua parte, com a sua reserva de forças, cada qual se proclamando um artesão dos tecidos históricos.
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