segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

RJ: Presentinho de Natal de Flávia Savary

TRÊS VELAS

Verônica morava longe, do outro lado da cidade. Como viera também de muito longe, ia se acostumando às distâncias. A única que estranhava era aquela entre as pessoas. Tão diferente de onde ela nascera... Lá, tudo era motivo de festas. Aqui, não — mal se cumprimentavam as pessoas.

Um dia, talvez por ser época de Natal e se terem habituado com sua face morena e sorridente a distribuir um café gostoso pelos corredores, acabou por ser convidada para uma ceia. A casa, cercada por belo jardim, tinha muros altos e muitos portões. Assim foi a descrição dada por certa colega que conhecia uma das empregadas da tal casa. Em sua terra natal era tão diferente... Os jardins eram todos públicos, e muro, coisa que não existia.

Verônica ficou feliz, no início. “Até que enfim uma festa!”, exultou. E lá de trás, do passado, trazida pelo sopro da memória, veio a poeira do chão de terra, levantada nos barracões promovidos a salões de dança. Ao invés de desperdiçar as noites, fechada em si mesma, assistindo a vida alheia nas novelas, passou a sonhar, debruçada na janela, contando estrelas e ouvindo serestas no radinho. Já não seria tão diferente de sua terra, pensou, tendo uma festa para ir. Conheceria outras e novas pessoas. Quem sabe até não arranjaria um namorado? E seguiu sonhando, igual fazia em sua terra natal — a ponto de esquecer as coisas como elas são.

— Verônica — perguntou uma amiga —, já escolheu o presente que vai dar pra dona da casa?

Ela olhou a amiga, com cara de quem é acordada no melhor do sonho.

— Presente, Marlene? Na minha terra, a gente levava uma vela com um laço vermelho, rezava, cantava e dançava. A gente levava só a gente mesmo. Mais nossa fé e alegria.

— Ih, boba, mas aqui é diferente! Aqui tem que levar presente, senão passa vexame.

E o tal presente desandou seu presente. De sonho a espinho. Já não tinha graça contar estrelas, nem ouvir radinho. O pensamento fixo no presente que agradasse a uma pessoa que mal conhecia.

E Verônica mudou, de novo. Tanta mudança em sua vida, desde que saíra da terra natal... De sorridente a ensimesmada. No mundo da lua. Foi para mais longe do que qualquer estrada podia levar. Vagando em torno daquele presente que assombrava sua fantasia. A cada pessoa que pedisse sugestão, ouvia uma diferente. E a televisão, que só mostrava um presente mais caro que o outro, prestação a perder de vista?

— Ai, na minha terra, bastava uma vela e pronto. Se muito, uma flor. Mas aqui...

— Verônica, aqui é diferente — diziam todos.

Seu programa se resumiu, daí em diante, a correr shoppings, magazines, feiras, camelôs. Qualquer lugar onde se vendesse coisa de comprar.

— Que gosto tem essa dona, meu Deus? Só conheço de ver de repente. E tá sempre falando ao telefone. Presente é coisa de coração pra coração.

E olhava vestido, pregadeira, cachorrinho de porcelana...

— Que gosto tem essa dona, meu Deus?

Resolveu entrar numa igreja para pedir uma luz. Na saída, Verônica viu, no corredor lateral, a lojinha de apetrechos da fé. Num canto, penduradas pelos pavios, velas compridas, amareladas, de pagar promessa, de sair em procissão. Comprou duas. Mais duas fitas carmim, de Nossa Senhora Aparecida. Carregou-as com cuidado, modo não quebrar. Dormiu. E tornou a sonhar.

Chegou o dia da festa. Ônibus vazio, só ela, o trocador, o motorista e um casal bem jovenzinho, com um nenê de colo. Deu tanta volta, nunca tinha ido para aqueles lados. Em frente à casa, ela saltou. Um homem de terno pediu que mostrasse o convite, que ela tirou do bolso do vestido bem passado. Entrou.

Diante da porta da casa, Verônica parou.

— Tão diferente da minha terra natal... Que tanto de brilho, gente, barulho, som alto e pisca-pisca, meu Deus!

E, de repente, acabou-se a luz!

Verônica acendeu as duas velas. A cera escorria devagar, em lágrimas quentes. A dona da casa, que estava por perto, veio correndo abraçá-la, chorando de alegria — é que a dona tinha pavor de escuro. Foi a luz de Verônica que salvou seu Natal!

...E ela viu que lá não era, afinal, tão diferente da sua terra natal...

(Conto do livro 25 SINOS DE ACORDAR NATAL, Editora Salesiana, SP, 2001. Ilustrações da autora. Em 2002 a obra recebeu o Prêmio Murilo Rubião para melhor livro de conto, na celebração do 44º aniversário da UBE, União Brasileira de Escritores)

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