Meus caros,
Participam do Vice-Versa de abril, os escritores: Márcia Leite (SP) e Caio Riter (RS)
Agradeço aos dois!
Grande abraço a todos,
Regina Sormani
Márcia Leite
Caio Riter
Caio Riter pergunta, Márcia Leite responde
1. Quais suas principais preocupações quando você se lança à escrita de um texto para adolescentes? É diferente de escrever para crianças?
Minha principal preocupação, quando escrevo para adolescentes, é escrever uma boa história. E considero boa história aquelas que possam fazer alguma diferença na vida do leitor, que o desacomodem um pouco do mundo onde estava sentado, que o provoque a ponto de que ele tenha vontade de acrescentar uma vírgula – ou reticências–, onde antes havia colocado um ponto final. Em outras palavras, preocupo-me em criar uma história em que tema e linguagem se complementem da melhor maneira, de modo com que o leitor adolescente possa sentir algum tipo de cumplicidade com seus personagens, com o enredo.
Lembrei-me de que no filme “Tiros em Columbine”, em que o diretor Michael Moore focaliza a tragédia ocorrida naquele colégio, surpreendi-me com a resposta do controverso artista Marilyn Manson, que, cá para nós, não seria considerado um bom modelo para os jovens pela maioria dos pais e educadores, e no entanto me presenteou com um excelente ponto de partida para as reflexões que me orientam na hora em que me coloco na frente do computador com a intenção de escrever um texto para adolescentes. Ao ser questionado sobre o que os jovens de Columbine precisavam, o cantor respondeu, sem pestanejar, que se deveria indagar a esses próprios jovens o que eles queriam. Em outras palavras, dar voz e escutar o que os adolescentes têm a dizer.
Não tenho dúvidas de que os jovens reconhecem quem sabe falar com eles, porque identificam nessa “fala” um movimento anterior de escuta e respeito, e que pode acontecer pelo diálogo com os pais, com um professor, uma letra de música, um programa de televisão... um livro.
De certa maneira, tomadas as especificidades da faixa etária, do repertório de vida, do fôlego de leitura e das condições de compreensão leitora, creio que não há tanta diferenças entre escrever para adolescentes ou para crianças. Para mim as preocupações são as mesmas: escrever uma boa história, com personagens intensos e convincentes.
2. Em sua opinião, existe tema tabu, quando se pensa a literatura infanto-juvenil? Você se impõe alguma autocensura ao escrever, tipo: "Bah, acho que ninguém publicará texto sobre tal assunto"? Qual, na sua opinião, é seu livro mais polêmico em relação à temática? Por quê?
Na minha opinião não existem temas tabus, existem temas sobre os quais os adultos evitam falar com as crianças ou adolescentes. E, veja bem, são os adultos que rotulam os temas como apropriados ou impróprios. Isso por que todos os temas, tabus ou não, estão no entorno de qualquer leitor, direta ou indiretamente, tenha ele 5 ou 50 anos.
Não me censuro, ao contrário, me sinto atraída por ter a chance de problematizar por meio da literatura, e com literariedade, temas que precisam ser abordados simplesmente estão aí, porque fazem parte da vida.
Felizmente o mercado editorial tem se mostrado mais receptivo a todos os tipos de temas, coisa que não acontecia há bem poucos anos. Tenho escrito e publicado textos que trazem temáticas complexas, como drogas, iniciação sexual, bulling, homossexualidade, famílias homoafetivas, morte, abandono, doenças crônicas, portadores de necessidades especiais, famílias desestruturadas e desestruturantes, gravidez etc. Como vê, de uma forma ou de outra, quase todos os textos que me interessam são, digamos assim, polêmicos para o censo comum.
Ë difícil afirmar qual é dos meus livro é o mais polêmico em relação à temática abordada, depende tanto dos dos valores e do ponto de vista dos leitores, não? Posso, no entanto, afirmar que o livro “Do jeito que a gente é”, publicado em 2009 pela editora Ática, precisou de alguns meses até que fosse “autorizado” a sua edição. Eu nunca escrevi uma história pensando se meu leitor seria um garoto ou uma garota. Sempre acreditei que escrevia para leitores e ponto. Um dia, me dei conta de que a literatura juvenil no Brasil não contemplava realmente todos os seus leitores. Fui pesquisar e descobri que os livros para adolescentes nunca apresentavam personagens cuja orientação sexual não fosse heterossexual.
Ou seja, os leitores que não se enxergavam nesse modelo de relação menino/menina nunca poderiam contar com a experiência intransferível que a literatura nos propicia, de conseguirmos dialogar com o texto, projetando-nos nele, reconhecendo-nos na vida de seus personagens. Por isso escrevi uma história em que um dos protagonistas é homossexual. Assim, ele pode dar alguma voz aos garotos e garotas que precisam esconder sua sexualidade para que possam ser respeitados nas salas de aulas, nas suas famílias, entre seus amigos. Infelizmente a homossexualidade só é tabu porque ainda vivemos em uma sociedade que alimenta o preconceito e a intolerância a tudo que não é igual. Acredito no papel transformador da literatura e nas portas que se abrem com as novas gerações de leitores.
3. No universo da literatura infantojuvenil, percebe-se que muitos textos são mais textos de histórias do que de personagens, ou seja, a preocupação maior parecem ser as ações e não o mergulho no "eu" dos personagens. Quando você escreve, o que mais a atrai: as ações ou o universo interior das personagens? Por quê?
Concordo com você, há mais textos de histórias do que de personagens. Mas acho que nós dois, Caio, não fazemos parte desse clube. Cada vez mais me reconheço como uma escritora que trabalha com a as diferentes manifestações e representações do mundo interior. Meus personagens vivem intensamente dentro deles, muitas vezes até mais do que no “mundo” real. A importância dos relacionamentos, dos afetos e das transformações são temas sempre presentes em tudo o que escrevo.
Nunca tive e não tenho a expectativa de que um livro ou um personagem seja capaz de ensinar valores ou desbancar atitudes. Acredito que personagens e histórias podem sim ajudar o leitor a se conhecer melhor e a entender com mais clareza algumas situações com as quais convive, seja no seu mundo exterior ou no interior.
Talvez, sendo bem otimista, a literatura, possa vir a ser uma das boas maneiras de se propiciar alguma forma de autoconhecimento e transformação.
Eu, por exemplo, creio que fui salva pela literatura, parece romântico, sei bem, mas era nos livros que eu me refugiava desde muito nova, e foram eles que me desafiaram e me ajudaram a ver que existiam mundos e vidas bem diferentes da que eu conhecia.
Já que estamos fazendo uma entrevista “virtual”, posso ceder à tentação de acrescentar um trecho de um texto maravilhoso de Bartolomeu Campos Queirós, chamado O livro é passaporte, é bilhete de partida:
“Texto e leitor ultrapassam a solidão individual para se enlaçarem pelas interações. Esse abraço a partir do texto é soma das diferenças, movida pela emoção, estabelecendo um encontro fraterno e possível entre leitor e escritor. Cabe ao escritor estirar sua fantasia para, assim, o leitor projetar seus sonhos.
(...) Reconheço, porém, um momento em que se dá o definitivo acontecimento: a certeza de que o mundo pessoal é insuficiente. Há que buscar a si mesmo na experiência do outro e inteirar-se dela. Tal movimento atenua as fronteiras e a palavra fertiliza o encontro”.
4. Escrevemos juntos a coleção Historinhas Bem... E, como você mesma disse, foi um grande desafio produzir um texto à distância e a quatro mãos. Assim, repito a pergunta: como foi tal experiência pra você?
Fizemos uma estranha e fecunda parceria, não é mesmo? A partir de uma consigna bem limitada (tema e foco narrativo em 1ª pessoa) conseguimos fazer milagres. Meu grande desafio foi me libertar do seu fantasma, ou seja, tentar ignorar que você também estava escrevendo uma história para o mesmo livro, com um personagem que vivenciaria situações que poderiam ser semelhantes ou totalmente distintas das que eu estava construindo. Por que, se eu me deixava contaminar pelo seu fantasma, corria o risco de travar. O fato de não nos comunicarmos enquanto escrevíamos foi uma estratégia que facilitou esse descolamento. A troca só de dava quando o texto estava concluído e deixamos para nosso editor a incumbência de nos orientar. Claro que poderíamos palpitar no texto do outro se quiséssemos, mas houve uma espécie de acordo não dito que nos levou ao mesmo procedimento: os livros teriam a impressão digital dos autores em suas histórias. Assim fui perdendo o medo do fantasma do Caio Riter e a coisa deslanchou.
Outro desafio, para mim, não sei se para você também, foi o de tentar. trabalhar de um jeito divertido e simples com emoções muito verdadeiras, muito sérias e por isso muito humanas.
Foi uma experiência e tanto, e espero que possamos repetir outras tão prazerosas e desafiantes como essa.
Márcia Leite pergunta, Caio Riter responde.
1. De que maneira o leitor Caio Riter influenciou o escritor Caio Riter?
A leitura entrou na minha vida, não sei bem como. Livros eu não tinha em casa, mas havia em minha infância uma mãe contadora de histórias, e gibis, e fotonovelas, e a fascinação por ouvir e ler histórias, dos mais diferentes tipos. Creio que estes textos estão presentes na pré-história do leitor Caio. Na verdade, o desejo de inventar mundos ficcionais, de inventar realidades possíveis, filtradas pelo meu olhar, começou a brotar em mim graças aos livros que, então, já eram necessidade. Passava dias e noites envolvido com a leitura e comecei a experimentar escrever histórias, as quais não eram mostradas a ninguém. Ofício silencioso e solitário. Muito do Caio-Leitor, com certeza, reside no Caio que escreve. Há na leitura o maior (e grande) aprendizado da escrita.
2. Muito se fala de transpiração X inspiração, planejamento X intuição, disciplina X criatividade e outros pares como esses quando se procura descrever o processo de escritura. Qual dos lados da balança você solicita mais quando escreve? Como é seu processo de escritura?
Com certeza, sou aquele tipo de escritor que o Dufrenne definiu como escritor-artesão. A inspiração é apenas um pequeno (mas necessário) ponto de partida: pode ser o desejo por tratar de certo tema; pode ser uma cena, ou frase, ou situação presenciada e/ou experienciada; pode até mesmo ser a encomenda de uma editora. O restante (que eu julgo principal, e sem o qual não temos história alguma) é planejamento.
Costumo arquitetar meus livros a partir de duas perguntas básicas: o que contar? Como contar? Na busca de tais respostas, articulo ações, personagens, trama e a cena final. Esta, geralmente, é a deflagradora da escrita. Se sei para onde conduzirei a narrativa, sinto-me “pronto” para me envolver com a criação daquele texto. Assim, o planejamento, sobretudo quando produzo textos maiores, é de fundamental importância no meu processo de escrita. Não que ele seja uma camisa-de-força. Não. É uma bússola, um mapa. E estes, por vezes, podem sugerir ou provocar algum desvio na rota, porém jamais uma mudança completa de rumo, pois aí a viagem seria outra e não aquela para a qual me preparei. Não acredito naquele processo de criação mais intuitiva, pelo menos o meu não é assim. Jamais abro mão de ser o condutor da travessia. Eu, o autor.
3. Sei que você é quase um escritor-caixeiro-viajante, desses que vive na estrada, sempre disposto a dialogar com os leitores que o solicitam. Qual o maior saldo desses encontros para vc?
Os encontros com os leitores sempre é rico. É a partir deles que sinto como minhas histórias e meus personagens vão ao encontro do leitor, pois, na maioria das vezes, escrevo para mim, escrevo por que sinto necessidade de dizer certas coisas, e de dizê-las da minha maneira. Assim, quando há sintonia entre o meu desejo e o daquele que me lê, tudo parece contribuir para o sucesso do livro. E, sempre que penso em sucesso de um livro, penso na sua capacidade de deleitar o leitor e de levá-lo a pensar sobre o mundo que o cerca, sobre si, sobre o outro.
Ah, e sem contar que, muitas vezes, o contato com os leitores vai além. Vários se tornam amigos, me adicionam nos seus orkuts, trocam ideias via msn e, por vezes, até viram personagens, como ocorreu com o Tadeu, de “Meu pai não mora mais aqui”.
Gosto deste contato com os leitores; ele é combustível. Quero sempre ser um escritor que exista e, para isso, preciso que minhas histórias sejam lidas, façam ecos nos corações dos leitores, criem neles o desejo de quero mais.
4. Escrevemos uma coleção (“Historinhas bem...”) à distância e a quatro mãos. Para mim foi um grande desafio durante todo o processo. Como foi essa vivência para você?
Com certeza, grande desafio. Produzir uma coleção que previa duas histórias em cada livro, ambas com o mesmo tema, apenas com o diferencial de dois olhares distintos: um feminino (o seu); outro masculino (o meu), e não ser repetitivo (visto que todas as histórias deveriam ter um narrador em 1ª pessoa) foi tarefa árdua. Todavia, prazerosa. Escrever tem sempre, acho, esta aura de desafio: será que daremos conta da história que nos vai por dentro? Será que as palavras escolhidas darão conta daquilo que desejamos escrever?
Confesso que quando recebi o convite, fiquei entre temeroso e atiçado. Era algo novo. Era algo a ser feito em parceria, mas não explicitamente a quatro mãos. Afinal, as escritas foram isoladas, cada um de nós tendo as premissas para a escrita, mas sem qualquer contato com a história que o outro estava produzindo. Uma sintonia mais de ideias, mais de perceber os caminhos possíveis de escrita, a fim de respeitar a criatividade sua e do outro. E isso tudo sem qualquer troca de palavras do tipo: bah, como tá a tua história? Experiência única até agora. Mas que, se possível, pretendo repetir.
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