sexta-feira, 17 de maio de 2013

SP: Pé de meia literário (22)



Por uma Teoria dos Buracos 

Dia desses, conversando com leitores jovens, em uma escola, diante do respeito cauteloso que eles vinham mantendo pela figura do escritor ali presente, não sei porquê comecei a falar de uma certa Teoria dos Buracos. 
Pura bobagem. Mas o que é a vida senão um punhado de bobagens que cometemos procurando encontrar caminhos acertados? 
Comecei propondo, claro, como toda teoria que se preza, um princípio geral que sustentasse o fundamento da argumentação: a vida é uma sucessão de buracos. Começa em um vazio e acaba em um buraco cheio de terra (ou de cinzas). Entre esses, há um desfile imemorável de outros buracos. Lembrei alguns, entre risinhos maliciosos e olhares distraídos: a fome (buraco no estômago), a saudade (buraco do coração); a ignorância (buraco no cérebro); o riso (buraco na seriedade); a raiva (buraco da ruindade); o sono (buraco da consciência); a pergunta (buraco da compreensão), a resposta (buraco da pergunta), o ponto final (buraco da falta de assunto), a fotografia (buraco da lembrança), o silêncio (buraco da palavra). A lista é longa, muito longa, tão longa quanto a vida. 
Depois do princípio geral, disse que, como toda teoria, boa ou ruim, a Teoria dos Buracos tem lá algumas regras que garantem sua comprovação. E tratei logo de desfilar umas poucas dessas regras.
A primeira regra é que todo buraco existe em razão de uma necessidade. Um buraco para comer, dois buracos para ver, dois buracos para ouvir, um buraco para enterrar coisas, um buraco para o trem passar, um buraco para guardar a saudade, um buraco para tapar, um buraco para a ponte passar, um buraco para cobrir, um buraco para costurar... Não há buraco inútil. Outra regra, não menos importante do que a anterior, é que todo buraco tem uma textura, uma forma e uma beleza que lhe são peculiares. Há buracos grandes e pequenos, retos e redondos, nervosos e calmos. Há buracos rebeldes, que nunca querem companhia; há buracos pedintes que pedem insistentemente que sejam preenchidos. Há buracos exibidos tanto quanto há os buracos tímidos, escondidos, cheios de vergonha. Há buracos com mania de crise, todo tipo de crise. Os buracos nos conquistam. Os buracos têm lá sua beleza, nem sempre posta à mostra de imediato, mas que não resiste a uma busca meticulosa.Também pensei nessa formulação das regras da possível Teoria dos Buracos que todo buraco tem sua flexibilidade, permeabilidade e porosidade. Isso, os buracos têm de sobra. Que graça teria se os buracos fossem sempre os mesmos, sempre iguais, sempre monótonos. Buracos que se prezam são como os textos que lemos ou escrevemos: porosos, permeáveis, flexíveis. São armadilhas de formas e significados que se mostram, se abrem para nos receber, e depois nos envolvem e engolem. Nesse sentido, os buracos se parecem com uma oração: neles não certezas, só promessas.
Sem dúvida, não poderia deixar de apostar em uma regrinha simples, tão simples que sua simplicidade não a deixa ser esquecida ou desconsiderada: todo buraco tem uma existência própria, espaçada no tempo, e pode mudar sua forma, sua textura, sua beleza, sua flexibilidade e porosidade. O que um buraco foi ontem não será necessariamente amanhã. Talvez por isso, o buraco, qualquer que seja ele, se parece muito com o futuro: está sempre por ser feito. 
Por último, propositadamente deixada para o final, me lembrei que há uma regra fundamental nessa teoria, aquela que diz da razão da sua existência: um buraco só existe porque em sua essência, sua contrapartida, há uma busca constante pelo seu preenchimento. 
Bem... antes que me perguntem (ou pensem) que importância tem essa teoria quase inútil em nossa vida, nessa vida em que corremos o tempo todo atrás de coisas, objetos, sonhos, realizações, posses, contas bancárias, prêmios, figurar em listas, títulos, ideologias etc, me apresso em responder explicando: humanos que somos, passamos a vida toda procurando completar nossas lacunas e incompletudes. E aí, feito uma epifania atrasada, meio que encontro uma razão para a tentativa de criação da Teoria dos Buracos: a literatura é a matéria da criação humana que mais atende ao apelo dos buracos. É a literatura, entre todas as áreas do conhecimento humano, que parece ter sido concebida para satisfazer essa busca constante pelo preenchimento dos buracos. É com a literatura que se entra nos buracos, preenchendo-os e que enche de beleza essa forma seca de ser dos buracos. É pela literatura que navegamos nos buracos acomodando ou ampliando os seus limites, respondendo ou perguntado, esticando os olhares e moldando a audição em busca de compreensões. É a literatura que faz roteiros de viagens nunca antes feitas por sombras, espantos, descobertas, imagens, comparações. É a literatura que ativa a capacidade de criar, quando guardada em mentes dorminhocas, e a capacidade de tolerar o buraco maior de todos que é o sentido da vida. É a literatura, com seu jeito manso, mas intensamente explosivo, que arruma uma varinha de condão ou uns óculos de leitura capaz de permitir o entendimento da complexidade, da transparência, da rapidez, da fragilidade e da superficialidade da vida. 
E a literatura, por não ser sólida – e por essa razão não se desmancha no ar – anda à procura de parceiros de caminhada. Ela também às voltas com os seus buracos. 
Bem... fico feliz, se a esta altura da leitura ganhei mais um adepto da Teoria dos Buracos. Se não...sigo com os meus buracos e que a literatura me ajude. 

EDSON GABRIEL GARCIA 
Escritor e educador

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