Marciano Vasques
APRENDIZADO E DESENVOLVIMENTO DO SER
“Não há uma polegada do meu caminho que não passe pelo caminho do outro”
Simone de Beauvoir
Somos palimpsestos de nossa própria história, resultados de camadas sobrepostas, vamos nos escrevendo a partir da vivência com o outro, e o outro é um processo histórico e social, a nos moldar, a interagir em nosso Ser, naquilo que somos, que podemos potencialmente ser.
Um só corpo, uma só mente. O que nos torna universo é a oportunidade de sermos uno, a unidade nos simboliza. Ser uno é uma vertente humana que nos remete a cientistas do pensamento, como Vigotsky, para quem o homem é um ser biológico e social: as duas fontes de ser se entrecruzam, sendo que o ambiente social transforma o imperativo biológico.
Sou como sou porque convivo, porque estou entre eles, porque me faço com o outro, porque não poderei me desenvolver sem a aprendizagem mediada pela convivência com o outro.
As funções psicológicas sofrem uma influência gigantesca do social. Esse é o suporte biológico, a forma de desenvolvimento do Ser, passando pelo outro. Em mim há uma multidão! Mesmo quando estou só, quando me ponho na solidão escolhida, quando acredito na ilusão da solidão, como se em mim não colidissem milhares de gestos, palavras ouvidas, olhares, iniciativas do outro. Aquele que me questiona é o que me fortalece, me aponta a minha própria essência, o que temos em nós que se entrelaça, que nasce na história que construímos, num processo interativo em que prevalece a influência do meio.
Nascido no mesmo ano em que Piaget, Vigotsky deixou-nos uma reflexão de importância ainda considerável em modelos pedagógicos que têm como base a idéia de que o funcionamento psicológico fundamenta-se nas relações sociais e desenvolvem-se num processo histórico.
Sou o resultado do que a história humana me fez, produto inacabado que surge da interatividade social. Um processo histórico em ebulição agita - me as águas interiores nas quais navega o ser biológico altamente influenciado e construído pelo fator social: a convivência é o tesouro inseparável da mente humana.
O social que me enquadra, que modela a força da natureza que rege a minha originalidade, prática biológica enquadrada pelo social, eis me diante da multidão, a edificar a criatura que se molda. Qualquer inadequação favorece a indisciplina universal e desarticula as órbitas internas do meu universo.
Mas não sou passivo, um recipiente, assim como um vaso no qual se possa socar a terra até que fique cheio (educar uma criança não é como encher um vaso, mas como acender uma fogueira, Montaigne) . Não sou o vaso solitário, passivo, que aglutina em silêncio as forças que interagem em mim. Sou, ao contrário, aquele que reage e participa do processo que em mim se instala. As forças sociais, a história na qual eu me deixo construir, não são ramificações que me atravessam em vão, não representam forças que atuam sobre uma indefesa vontade, mas eu as construo: sou o que sintetiza o processo de crescimento, que se dá de fora para dentro, não de uma forma passiva, mas com o consentimento meu, e a interação se completa porque eu sou aquele que ousa crescer em conjunto, o que vale dizer, permito – me ao atrevimento de participar da minha própria construção.
Como anterozóides que se lançam em várias direções após a chuva, as matérias das quais me nutro, a vida social em mim, a construção histórica na qual eu me movimento, isso tudo é um processo dinâmico de interação entre o mundo cultural e o subjetivo: mundos que na colisão chamada vida, constroem o Ser.
Todo aprendizado, a cada manhã, olhando entre as frestas do sol, as nódoas entre os verdes das folhas nas quais deslizam vidas reluzentes, fibras num rosto, as maravilhas que o cérebro humano cria, o menino que cruza varetas e salta valetas, os trens, os espantalhos, força da natureza nas águas que se atiram contra os rochedos, os saberes que o acadêmico ergueu, a multidão desprovida que luta ferrenhamente pela vida nas ruas do meu país, os que aparentemente sabem menos, mas enriquecem a vida com suas histórias e seu afazeres delicados; todo aprendizado impulsionando o meu desenvolvimento!
Desenvolvo-me porque aprendo, como sempre aprendi, desde que no cimento frio e liso de uma varanda antiga estendi o roxo de um papel de seda que influenciou para sempre o meu sentido da visão, e com a cola arábica fiz o primeiro balão, que alguém chamou de pião de bico torto, e então a tocha molhada de querosene, e o breu em minhas mãos, sendo por mim socado, enrolado por um pedaço de saco de estopa, e aprendi quando atirava as mamonas e sentia a aspereza numa forma verde, e ganhava a consciência do tato, e quando observava uma joaninha nos verdes que se foram, e como abraçava a felicidade mirando o vermelho das telhas num contraste com um azul confortante, num triângulo que o mesmo telhado já em sombras no final do dia transformava numa das visões gigantescas e indissolúveis do meu desenvolvimento.
Aprendi quando imitava o outro, não mecanicamente, mas assim num processo lúdico de crescimento, na criação de algo novo além de mim, da minha capacidade de compreensão naqueles momentos. Imitava porque crescia e o outro já me fornecia a proximidade com o aprendizado, numa zona de interferência que o meu Ser acatava. O processo de imitação nunca foi algo banalizado em meu desenvolvimento, mas uma força ativa, na qual eu reproduzia para crescer, imitava para ser.
A presença do outro em minha vida deu-se através da história social na qual sempre me movi, o movimento social que interagiu com o meu querer, o aparato social que enquadrou minhas necessidades mais intimas. Ambientes que originalmente transformaram o imperativo biológico que me foi presenteado pela natureza.
Crescer é compartilhar. Léguas e polegadas, distâncias infinitas, uma estrada que termina no horizonte, mas o horizonte é uma ilusão, porque além dele o mundo continua, e a alegria de desenvolver-se com o outro, passando pelos caminhos do outro, há de se tornar sempre a mágica da vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário