quinta-feira, 18 de março de 2010

SP: Pé de meia literário (7)

POR QUE A LITERATURA MEXE COM A NOSSA CABEÇA?

O título deste texto poderia ser uma afirmação, não uma pergunta. Poderia ser uma exclamação ou uma afirmação reticente. Por que eu escolhi o caminho da pergunta?

Como escreveu, e sempre disse, o inesquecível mestre Paulo Freire, “nada como uma boa pergunta” para alavancar o conhecimento. Ou a emoção. Ou o pensamento.

Aí está, portanto, uma boa pergunta: por que a literatura mexe com a nossa cabeça. A qualidade de uma boa pergunta é sugerir (indicar, apontar, fustigar, pedir, dizer, sacar, orientar, provocar, etc) muitas respostas. Como esta(s).

A literatura mexe com nossa cabeça porque desabotoa vontades, expõe nossa frágil organização de defesa diante da humilhação de nos saber incompletos e tão cheios de desejos, guardados e escondidos aqui e ali nas dobras das rugas, no penteado bem comportado dos cabelos.

Mexe com nossa cabeça porque faz um mapeamento nada solene das dúvidas. E são quantas e tantas, perdidas em nosso ser esquematizado para não errar. E assim, mapeando coisas não sabidas, instiga os olhos adiante do que vemos.

A literatura, quem diria, sopra o pó dos sonhos. Assim limpos da poeira do tempo morno, os sonhos ousam fazer frente à realidade e pedir passagem, marcar presença, riscar novos traçados. O sonho enche a alma de querer viver.

A literatura, quem diria, desacomoda certezas, empurra o limite do saber para longe, muito longe, mas ainda tão perto que possamos alcançar e ultrapassar. E aprender de novo. Aprender o novo. De novo. Porque esse é o ritmo da vida.

A literatura mexe com nossa cabeça porque insiste em alterar os horizontes de nossa utopia pessoal, para além desse mísero gole de existência. Adiante, mais à frente, o passado e o futuro se encontram, um de olho no outro, o presente concretamente escorregadio entre os dedos.

Mexe com nossa cabeça porque nos permite desviar das pedras do meio do caminho ou atrita-las até que o conhecimento se faça fogo, assim dando lucidez à pluralidade dos saberes adormecidos em nós.
E mexe, por inteiro, porque nos acostuma a dar voz ao silêncio. Tira a carranca da boca fechada e intima todo passageiro das palavras a pensar alto, a por palavras no fígado, a morder idéias, a chupar o caldo saboroso do prazer de dizer. O silêncio rompido é o carinho dos ouvidos tristes.

O silêncio rompido é beleza palpável que enche de brilho nosso caminho.

A literatura mexe com as palavras enfraquecidas, com as idéias dormidas e caladas, com os costumes de aquietação, com as perguntas escondidas e as respostas adormecidas. E faz uma sinfonia plural de emoções. Depois de mexidas, o que se há de fazer senão abrir o palco para a cena montada?

Mexe com nossa cabeça porque alavanca novos entendimentos, porque cruza as fronteiras do conhecimento já estabelecido, porque inventa outras caras para os desejos e porque incita cada um de nós a ter uma pessoa feliz dentro de si.

Mexe porque é a prova mais viva e definitiva de que não estamos sozinhos no mundo, nem nunca estivemos, e a prova do acerto socrático milenar que sabemos pouco e há muito o que aprender.

Mexe porque a literatura nada cobra do leitor, a não ser a disponibilidade de ceder algum tempo da vida para a curtição do prazer da descoberta. E não cobrando, recebe de volta o envolvimento das amarras desligadas, dos vigilantes da moral adormecidos, da sensação gostosa de não ter que prestar contas.

E mexe, enfim, porque... porque nos convida, provoca, chama, seduz e permite entrar de cabeça na plenitude da vida, o mais delicioso de todos os mistérios.

É preciso mais?

Edson Gabriel Garcia

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