Primavera em Sampa é o primeiro de uma série de contos criados por escritores e ilustradores da nossa regional.Este conto foi escrito por: Eliana Martins, Nireuda Longobardi, Manoel Filho, Regina Sormani e ilustrado por Danilo Marques.
PRIMAVERA EM SAMPA
Ipês, azaléias, patas - de- vaca, marias - sem- vergonha, damas da noite, camélias, manacás e tantas mais...
Flores que desabrocham por todos os lados, anunciando que a primavera chegou, tomando conta dos jardins, parques e quintais da nossa querida Sampa.
Contrariando seu apelido de Selva de Pedra, em um canto escondido do Brás, zona pobre e fabril, onde as fábricas se distribuem, enfileiradas, uma pequena planta brotara timidamente. Dentre as tantas outras que haviam chegado com a primavera, ela
passara despercebida, não fosse o lugar e a forma como nascera: da rachadura da parede de uma casa abandonada.
Certamente, se a planta tivesse brotado do lado externo da casa, poderia absorver a água da chuva e do orvalho.
Mas, não! Ela nasceu para o lado de dentro. E vinha verdinha e forte.
Escurecia quando Claudenir chegou à casa. Deixou sua caixa de engraxate ali, na porta e foi conversar com Verdinha:
— Demorei, né, minha linda? Mas, já voltei! Olha aqui a sua aguinha....
Então, pegou uma velha caixa de manteiga cheia dágua e borrifou na planta:
— Eta gostosura!
Claudenir bebeu a água que restou. Seu estômago roncava. Vasculhou os bolsos e encontrou um único biscoito.
Enquanto comia, viu um ratinho no buraco da parede. Teve dó do pequeno que o observava. Tirou um pedaço do biscoito e depositou na saída do buraco. Ficou olhando o rato comer até que ele desapareceu na fenda.
Claudenir forrou o chão com um papelão que estava dobrado num canto da parede. Deitou, cobrindo-se com uma velha manta. Uma rajada de vento trouxe algumas flores que entraram pela janela quebrada, espálhando-se sobre o garoto.
Flores de um majestoso ipê amarelo que ocupava quase todo o espaço do pequeno jardim da casa abandonada.
Com um sorriso nos lábios, Claudenir deu boa noite à sua amiga Verdinha e ficou a pensar....
Deitado, observando a luz acesa dos apartamentos dos prédios vizinhos, imaginou que estava em outro lugar. Em casa, onde era o seu lugar, deitado na cama simples, porém, bem arrumada, com lençóis limpos. Podia até sentir o cheiro do chá de camomila que a mãe fazia antes de dormir e do qual ele tanto gostava.
O sono chegou, e nele, Claudenir embarcou, ainda sorrindo.
Mas, não era sorrindo que ele chegava aos seus sonhos. Esses tinham a péssima mania de trazer de volta o seu passado, lembrando-o das razões que o levaram até aquela vida. Talvez não precisasse dormir numa cama de papelão se não tivesse contado à sua mãe o que vira.
Como se arrependia do momento em que abrira a boca. Será que ela, algum dia, iria perdoá-lo?
Pensou em tudo o que acontecera. Lembrou cada detalhe do flagrante que dera no padrasto, naquela noite em que voltava da escola e presenciara aquela cena.
Na esquina, bem perto do ponto do ônibus, tinha reconhecido o padrasto que, armado, assaltava uma pequena mercearia. Era ele mesmo, o padrasto, Claudenir sabia. Mesmo com um capuz cobrindo o rosto, havia reconhecido a voz ameaçadora.
Muito mais tarde, o padrasto chegou em casa com dinheiro, peças de presunto, queijo e bebidas.
No dia seguinte, Claudenir contou tudo para a mãe. Para sua surpresa, ela não acreditou e depois de uma discussão colocou o filho na rua.
Foi no meio dessas recordações que o sono chegou e o garoto adormeceu, exausto.
Acordou e percebeu que tinha que fazer alguma coisa para mudar aquela situação.
Lavou o rosto na água armazenada num balde e com as mãos em concha derramou um
pouco do líquido na amiga Verdinha, dizendo:
— Até já, menina! Vou ganhar meu dia.
Claudenir apanhou sua caixa de engraxate e saiu para a rua. No meio da quadra havia uma banca de revistas e jornais. Estava passando por ali quando sentiu algo arranhar seu pescoço. Voltou-se, assustado e percebeu que a gola da sua camisa havia se enroscado num galho de árvore.
Era o galho de um pé de pata-de-vaca repleto de flores brancas que se debruçava por sobre a banca de jornais. Enquanto Claudenir aspirava seu perfume, alguém chamou:
— Menino! Aqui, na banca. Venha cá, não se assuste!
— O que o senhor deseja?
— Esse galho agarra todos que passam. Mas, está tão bonito que fiquei com pena de cortar! Epa! Espere aí... você é o Claudenir, estou certo?
Assustado, o garoto concordou:
— Sou....mas, como...
— Calma! Acabei de ver sua foto no Sampa News. Sua mãe está te procurando. Seu padrasto foi denunciado e preso, acharam provas contra ele.
— Nossa! Preciso voltar pra casa! Mas, não tenho dinheiro, estava indo procurar fregueses para engraxar...
— Eu empresto e depois você me paga, combinado? Corra! Vá pra casa!
— Obrigado, moço! Aceito, sim.
Minutos depois, já dentro do ônibus que o levaria pra casa, lembrou-se que nem sabia o nome daquele novo amigo que o ajudara. Com o nariz apertado contra o vidro da janela, ia olhando, encantado com as flores que via nas praças, nos quintais, colorindo a vida lá fora. Afinal, era primavera na metrópole! Lembrou-se do ipê amarelo, da pata-de- vaca que arranhara seu pescoço e .... da sua amiga Verdinha, a planta que havia brotado dentro da casa em ruínas. Falou alto:
— Vou voltar lá, amanhã! Trarei um vasinho com terra e assim poderei levá-la comigo. . . também vou passar na banca e acertar contas com meu amigo. Estou indo pra casa! Não vejo a hora de chegar lá e encontrar minha mãe.
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