quarta-feira, 21 de abril de 2010

SP: Quintas (4)




QUINTAS



Página Semanal de Marciano Vasques




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NO DIA 
EM QUE BEIJEI 
TATIANA BELINKY



No dia em que beijei a Tatiana Belinky, em que estive pela primeira vez com a  querida vovó do Brasil, a que um dia foi a menina louca por livros, em que a chamei de meu amor e pude abraçá-la, nesse dia também conheci pessoalmente o Chico dos bonecos, e meu coração foi invadido pelas Meninas do Conto na alegria.

No dia em que a beijei, o beijo do leitor apaixonado, nesse mesmo dia, porque a alma é grande, Orilde Hofmann estava lendo o livro de Erich Fromm. Sozinha em sua casa lendo "Análise do Homem".
Porque a alma é grande percorri como num filme os meus enganos, destinos que fui tecendo por esta grandeza na qual não há estudioso que venha a se debruçar.
Quisera planejar um escrito, escrever um texto acadêmico, quisera poder organizar a dor. Como tenho tanto que agradecer à vida! Só tenho que agradecer. Queria ser puro agradecimento, poder passar aos que lêem, que vendavais e festas repousam no alto da minha solidão escolhida, quando para a literatura retorno.


Ah, os grupos fechados de poetas! O silêncio, os amigos, os poetas da ternura, ou seja, da resistência, pois assim é a ternura, palavra que nos diz rocha, firme, dura, resistente. É comum a palavra mudar semanticamente, porém algo nela fica, e na ternura ficará sempre o rochedo primordial, principalmente na ternura do poeta. Pois afinal, ternura que se desfaz, que se transforma em areia, não é ternura, é plágio, pirataria do coração.
A palavra é exorcista, o medo é vencido pela palavra, a magia jamais abandonou a palavra. Ela que abre a porta, é ela que afugenta o medo, o medo do lobo, o que na literatura infantil de Chico Buarque vira bolo. Mas há outros chapeuzinhos, algumas trocam o chapéu por uma fita verde no cabelo. E a menina decide seguir atrás de suas asas ligeiras. Tudo era uma vez, disse o senhor Guimarães Rosa, que nasceu no quase fim de junho e junho já se aproxima. O homem que morreu de enfarte três dias depois de pronunciar um discurso falando os valores essenciais da vida.
Há quem diga que me preocupo demais com certas coisas, respondo que se não for assim a vida não vale a pena. Há várias formas de se enganar a vida, de passar o tempo, mas a vida é ferrenha. Demasiada autêntica, exige que seja preenchida com o verbo, isto é, não tem sentido se não for satisfeita, e isso só é possível por intermédio do verbo viver. 

Na mitologia da criação do mundo foi o verbo que fez a vida, isto está claro em Gênesis: o verbo faz a luz, luzifica o mundo. A luz se põe e fica no mundo através da palavra. O Deus bíblico é o Deus da palavra. Ele se apresenta ao mundo através dela, Ele está nela. A forma da sua apresentação é poética, profundamente literária. Palavra se manifestando belamente.
Por ser a vida regida pelo verbo viver, ela passa a significar a falta de acomodação, o que quer dizer mais ou menos o seguinte: não dá para não se preocupar com o que na vida está. A vida exige vida por um gesto de atenção a ela mesma.
 
Alfelizabeto, felicionário, palavras que invento. Depois penso em cair na estrada, penso que muito antes de surgir essa idéia em meu coração, tive o privilégio de cair nas estrelas. 
Fui me tornando adulto, o que fui percebendo ao reparar alguns pensamentos estragados, apodrecidos. 

Na canoa da vida, pensamento bom às vezes vira inveja. Mas inveja é coisa do alheio. E aqui, afinal, ainda estou com o rostinho redondo da Tatiana Belinky em meu pensamento. Encontrar alguém assim tão lindamente na altura dos seus anos de vida, é festa.
 
Por ter um compromisso tático com o filósofo e com o poeta, um compromisso de sobrevivência, um contrato mental, então a morte não me interessa, não me interessa como assunto, não suporto a idéia de estar com alguém que insista no assunto morte. Tenho plena consciência da sua inevitável chegada em todos os seres, mas o compromisso verbal de quem se aproximou dos poetas é com a vida.
Esse compromisso se dá pela leitura, pela palavra escrita, é ali que conheço e me aproximo do poeta, e então selo o pacto da vida.
 
Deve ser tão bonito ser Tatiana Belinky! Deve ser algo assim parecido com ter sido Paulo Freire. São pessoas que se tornam personagens, pessoas que não podem ser traídas. Se você trai Paulo Freire, por exemplo, é problema. Estou querendo dizer que haverá sempre um último porto, uma última resistência. Ou seja: ou a morada da ética está dentro de você, ou então...
 
Alguém na solidão de um apartamento lendo Erich Fromm, a vovó de rosto redondinho falando doçuras: nossa época não é totalmente descabida.



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