A princesa e a Ervilha
Acho interessante falar sobre o processo criativo desta obra, porque o texto teatral tem umas especificidades. “Como é a sensação de ver um texto que você escreveu sendo encenado no palco?” – já me perguntaram. Para poder explicar bem, vou começar a falar de antes, do tempo em que A princesa e a Ervilha era só uma ervilha na minha cabeça, uma coisa me cutucando.
Pediram-me para escrever uma peça de uma história tradicional. A ervilha logo apareceu. Tenho uma coleção dos contos de Andersen, cinco livros lindos, de 1961, cheio de histórias instigantes, muitas tristes, outras (como esta), alegres. A coleção era do meu pai, mas eu fiz uma cara tão pidona que ele teve que me dar!
O conto é curtinho, algumas fontes dizem que Andersen recolheu esta história do folclore da Suécia. Não é uma das histórias mais conhecidas, e ela é diferente, segue uma linha narrativa que não é comum, o príncipe não luta pelo amor da princesa, ela simplesmente aparece. E ela tem que passar por uma prova, o teste da ervilha, para provar que é uma princesa de verdade.
Minha primeira “ervilha” era descobrir sobre o que esta história falava. Um conto de fadas sempre trata do amadurecimento interno de um personagem, até que ele chega à autonomia (casa-se ou assume o reino). Este príncipe partiu, por escolha própria, em busca da princesa. E não encontrou. Que herói é esse que não luta por nada, e depois vem a princesa assim, “de mão beijada”? Ou a heroína é a princesa, que teve que passar pelo teste da rainha? Mas ela só sentiu a ervilha, não precisou lutar também...
Andersen fala rapidamente sobre a busca do príncipe, mas eu resolvi falar mais. E mostrei todos os encontros e desencontros que o príncipe teve com diversas princesas. Na vida real não é assim? Quantas expectativas são frustradas, como mudamos de opinião, como erramos e acertamos em busca do par amoroso... E quando pensamos que encontramos, às vezes o outro não nos quer. E aos trancos e barrancos vamos aprendendo o que já sabíamos: para gostar de alguém, precisamos primeiro gostar de nós mesmos! Ou, como diz o lacaio para o príncipe: “para achar a princesa de verdade, Sua Alteza precisa se tornar um príncipe de verdade”. Acho que esta é a grande lição dessa história. Mas cada um tem seu percurso, suas florestas e seus testes para enfrentar, até descobrir isso.
Quando o príncipe, já amadurecido, volta sem a princesa, mas decidido a cuidar “dos seus afazeres de príncipe”, começa a segunda parte da história: a princesa de verdade aparece em meio à tempestade e tem que passar pelo teste da rainha. A história não tem bruxa, não tem vilão, quem faz alguma “maldade” é a rainha, mas ela é mãe, ela é sogra! Acho esta rainha muito interessante: todo mundo se identifica com ela ou porque tem uma mãe assim, ou porque é assim como mãe. Difícil escapar de querer cuidar e acabar exagerando, né? Mas não é por mal, é por excesso de bem. Rimos e a perdoamos imediatamente.
Cada um que faça a interpretação que quiser ou que puder. Para mim, a história “A princesa e a ervilha” saiu leve, divertida, engraçada, foi boa de escrever. Mas, quando se escreve uma peça teatral, há a preocupação de como é que vai ficar isso no palco. Porque o teatro exige um tempo certo para as coisas acontecerem: se for muito rápido, as pessoas podem não entender, se for muito devagar, perde a graça.
No livro, a gente escreve tudo, podem ficar páginas e páginas descrevendo um lugar, seu cheiro, seus sons, dizer o que o personagem está sentindo, como ele está falando, que cara está fazendo... E ainda assim o leitor tem espaço de sobra para imaginar, interpretar do seu jeito, lembrar de outras coisas. Mas o texto teatral é diferente, a ação e o diálogo já trazem a força da emoção, já mostram se o cenário é importante ou não. Talvez o texto teatral por si só seja mais generoso, mais aberto a dar-se porque ele só se completa no palco.
Quando escrevi “O menino, o cachorro”, entendi que o texto é meu, mas o livro, livro mesmo, o objeto e tudo o que ele representa foi feito por várias pessoas. Isso me ensinou a ser mais humilde. Porque é como uma digital: o texto pode ser reeditado por outra editora, com outro formato, outras ilustrações, mas aquele livro é só ele, ele é único.
Então, quando dei a peça para o produtor, eu já estava aberta e curiosa pra saber o que é que ele ia fazer com aquilo. Ele achou graça do nome, gostou porque eu coloquei uma música (“A felicidade” - só a letra, porque a melodia nunca me atreveria), e leu o fim. O olhar dele, de riso, foi como se fizéssemos um pacto naquele instante, acho que é como um bando de crianças que se reúnem no quintal e dizem: vamos brincar de faz de conta? Dá um friozinho na barriga, dá excitação, dá medo, dá vontade de rir, dá vontade de falar, dá vontade de se mexer.
Eu assisti a um dos últimos ensaios. E a primeira coisa que senti foi um respeito enorme. Eu, pelos atores, pelo diretor, pelo músico, pela coreógrafa, pelo maquiador, pelo iluminador, porque sabia que cada um ia colocar sua marca pessoal, ia construir o pedaço que faltava e que eu nunca ia conseguir fazer sozinha. Eles, por mim, porque se preocuparam em serem fiéis às minhas ideias, queriam que eu ficasse satisfeita com a transformação de palavras em vida.
Bem, chegamos ao dia da estréia. Como eu já sabia como a peça estava, minha atenção se voltou para o público. Como as pessoas iam receber tudo aquilo? Será que iam gostar? As crianças, as crianças, eu queria ouvir as crianças... A peça é para elas, e elas são sábias, elas poderiam me falar se tudo saiu bem.
No escurinho daquele teatro lindo, lotado, uma energia boa, como se todo mundo estivesse compartilhando da mesma brincadeira.
Enfim, a sensação de se ver um texto teatral que você escreveu pulsando lá no palco eu prefiro não descrever com palavras, mas com imagem. É assim:
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