QUEM LÊ ESCOLHE
Dia desses, na edição de 15 de agosto do Caderno 2, do jornal O Estado de São Paulo abordou um tema espinhoso, raramente tratado pela grande mídia e quase nunca discutido entre nós: a escolha e compra centralizadas de livros para acervos de instituições culturais ou educacionais. Nessa matéria citada, a jornalista Maria Fernanda Rodrigues abordou a escolha e a compra de livros feitas pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e questionou o então secretário da cultura do município da capital paulista sobre o fato de apenas quatro editoras terem sido favorecidas pela compra. Lá não houve, como aqui não haverá, questionamentos quanto à qualidade dos livros comprados.São todos produtos de qualidade, como são os milhares que ficaram fora da escolha e compraJá tratei desse tema outras vezes, em palestras ou em textos escritos para minha coluna bissexta PÉ DE MEIA LITERÁRIO e uma vez para o boletim informativo da AEILIJ. É assunto escamoso, espinhento, delicado e OCULTO. Insisto nos mesmos argumentos de sempre. Vamos a alguns deles. A escolha e compra centralizada, feitas por “escolhidos e superdotados seres mais qualificados do que os outros”, ignoram os interesses e dos futuros possíveis leitores. Puxam para si, a responsabilidade de fazer uma escolha melhor do que aquela que por ventura fariam os leitores. São especialistas, entendem do assunto e sabem o que estão fazendo. Os leitores aprenderão com o tempo, imaginam. Engano: aprendemos a nadar, no diálogo com a água, nos lembra a filosofa Marilena Chauí. Aprendemos a escrever, escrevendo, nos recorda qualquer pedagogo. Certamente, aprenderemos a escolher, escolhendo; da mesma forma que aprendemos a ler, lendo. Elementar.Este tipo de atitude vem acontecendo há tempos. São posturas paternalistas, em um primeiro momento, repetidas em todas as compras governamentais. Os governantes escolhem um grupo de “especialistas” e dão a esse grupo o poder de escolher o que outras pessoas vão ler. E, claro, são bem pagos para praticar esse trabalho. Nossas escolas públicas, todas, quase sem exceção, recebem acervos escolhidos e comprados de modo centralizado, sem nunca terem podido indicar um livro sequer para o acervo com o qual deverão trabalhar e formar leitores. Tiram desses mediadores de leitura e futuros leitores o direito de aprenderem a formar o seu gosto, o direito de errarem por conta própria e de acertarem do seu jeito. A eles é negada a formação autônoma. Além disso, essas escolhas centralizadas direcionam o gosto e apontam o caminho a seguir. Se não for seguindo a lição apontada nas escolhas, o caminho não deve ser seguido. É uma crítica embutida, camuflada, que nega a diversidade. A natureza nos dá uma sábia lição, recusada nesses casos: a “biodiversidade”. Desculpem-me a metáfora perguntativa: por que será que entre milhares de tipos de feijão a oferta que nos é feita pelo comércio se restringe a poucas espécies? Por que será que entre as cerca de dois mil tipos de batata ficamos restritos a três ou quatro tipos? A natureza nos proporciona centenas e milhares de espécie, mas quem decide por nós nos oferece pouco, muito pouco, quase nada diante da biodiversidade.Também não podemos esquecer em que país vivemos e o contexto político que envolve decisões e compras centralizadas: favorecimento particular e a corrupção. Não posso afirmar que toda compra centralizada cheira à corrupção, mas esta é uma prática que sabemos grassar em abundância nas compras feitas centralizadamente. Compras feitas em alta escala e em grandes volumes assedia esse comportamento. O mercado editorial, composto por grandes editoras, algumas de capital estrangeiro, de olho gordo nessas compras centralizadas, composto por editoras de forte natureza nacionalista, por pequenas editoras e por românticos aventureiros que ousam publicar coisas fora do eixo centralizador, tem que lutar por essa “biodiversidade” de escolhas e compras. Tem que apostar que quem lê vai gostar – e muito – de aprender a escolher o que quer ler. Quem lê escolhe.Os criadores, autores, ilustradores e demais artistas da produção gráfica, terão muito mais prazer e alegria e liberdade em exercitar sua criatividade apostando na diversidade, sem ficar amarrado aos critérios claros – e ocultos – do grupo sábio de especialistas que dizem o que deve ser lido, por imposição de sua escolha e da compra centralizada. Centros culturais, bibliotecas e escolas certamente sentir-se-ão sujeitos do seu processo de formação de leitores, pois que deste faz parte aprender a escolher. A leitura de um livro,a paixão pela leitura, começa antes da leitura propriamente dita. Começa lá atrás, no manuseio dos livros, na observação, no desejo de bisbilhotar, de procurar coisas oferecidas e no fortalecimento dos olhos, das mãos, do tato, do paladar e do cheiro do quese quer ler. Prazer que hoje fica restrito aos especialistas contratados para escolher o que os demais mortais comuns poderão – ou deverão – ler. Seria interessante se nós, interessados na democratização da leitura e do acesso à diversidade dos livros, colocássemos em nossa pauta de reflexão esta questão: quem lê escolhe.
EDSON GABRIEL GARCIA
Escritor e educador
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