Terça-feira, 2 de Dezembro de 2008
SGROI pergunta, SPACCA responde:
1) SGROI - Vou começar pelo Santô: Pesquisar, escrever e desenhar 168 páginas de quadrinhos definitivamente não é fácil (ainda mais tendo que conciliar com as "continhas" para pagar no fim do mês)! Li, em uma resenha feita na época do lançamento, que você levou 25 anos para concretizar o projeto. Gostaria que você falasse sobre como você se manteve motivado por todo o percurso do trabalho e como foi o seu processo de criação (aliás, não só do Santô, mas dos seus demais livros também).
SPACCA - Bem, quando comecei a querer contar a história de Santos-Dumont, eu tinha 15 anos, e meu desejo era fazer um desenho animado.
Eu tinha visitado um museu da aviação no parque Ibirapuera (onde fica hoje a Oca) e além de ter visto a Demoiselle e uma réplica do 14-bis, tinha comprado um livro cheio de fotografias, e isso me animou. Também, motivado pelo livro, eu queria "desmascarar" os irmãos Wright, já que eu via nos filmes americanos que eles é que eram considerados os pais da aviação. Note que essa visão mudou completamente no Santô.
Durante muito tempo, eu rabiscava, pesquisava e abandonava.
Também peguei o hábito de, ao entrar em qualquer livraria, procurar livros sobre o assunto, diretamente ligados à História da Aviação ou sobre a época, História do Traje, dos automóveis etc.
Eu sentia também que era importante conhecer, ainda que fosse na teoria, a cidade de Paris.
Tem um filme da Disney que eu vi quando criança, que era "Aristogatas", e que mostrava Paris exatamente na mesma época.
Na faculdade, fiz um trabalho sobre os pintores impressionistas franceses, e fiz algumas experiências reproduzindo fotografias do 14-bis pintadas no estilo de Monet - há um monte de idéias não aproveitadas no álbum.
Quando saiu o livro "O Brasileiro Voador", de Márcio Souza (1986), era para ser roteiro de um filme da Tizuka Yamazaki (cineasta de "Gaijin"), nunca realizado. Fiquei esperando o filme, meio com ansiedade, e preocupado em tentar achar um título melhor que esse (que eu achava uma síntese perfeita). Nesse livro, o capitão Ferber é alto, magro e é o vilão, rival de SD (no meu álbum, fiz questão de mostrá-lo como realmente era, baixote e idealista como Santos-Dumont, também fã de Júlio Verne, fez a hélice do 14-bis e morreu pilotando um avião Wright). Algumas vezes cheguei a idealizar um álbum de HQ, de 48 páginas, como Asterix.
Na década de 90, planejei um CD-Rom, aqueles programas interativos com quadros para a pessoa clicar e explorar. Foi nesse momento (1996 mais ou menos) que estudei melhor os aviões, os motores e as máquinas de café.
A "moral da história" também foi mudando, conforme eu fui amadurecendo e mudando de ponto de vista, inclusive profissional.
Comecei a achar Santos-Dumont insuportável, um almofadinha que tinha recebido tudo de mão beijada e destinado a vencer... enquanto que os Wrights e todos os outros pioneiros enfrentaram enormes dificuldades financeiras. Eu também nessa época tinha acabado de casar e estava tentando escapar do aluguel... Então comecei a mudar o roteiro e incluir todos os outros, o que as biografias brasileiras nunca tinham feito. E também comecei a procurar conflitos mais interiores e psicológicos para SD, já que os recursos materiais ele tinha. Assim, eu o tratei como se fosse um filho único (ele não era, mas eu sou) e aprofundei a relação com o pai. A herança que ele recebe é também um fardo, uma missão - o pai lhe dá recursos e liberdade e em seguida morre. Conquistar o vôo é para ele uma questão vital, de identidade, e falhar para ele é imperdoável. Essa visão do personagem, embora recriada, se encaixa perfeitamente nos fatos. E todos os meus álbuns, embora inevitavelmente contenham minha visão pessoal, sempre expressam o que acredito ser a verdade (sim, a verdade existe...).
Foi uma sorte encontrar num sebo um retrato do amigo de SD, o cartunista SEM. Por meio dele coloquei no álbum minha experiência com jornalismo e publicidade, fazendo SEM mostrar a SD a importância estratégica do relacionamento com o público. Na realidade, os dois eram meio mudos e não sabemos do que conversavam, nem se escreviam cartas um ao outro. Mas SD certamente sabia criar situações de divulgação, tinha a noção do espetáculo e sabia mover o público a seu favor (vide a cena do prêmio Deutsch), embora tivesse horror à idéia de fazer publicidade comercial no dirigível. E SEM era um especialista em moda e em famosos. Assim, esse lado da fama prepara, mais para a frente, o esquecimento do público quando os irmãos Wright vão à França e SD fica deprê.
Vou parar por aqui, porque 25 anos é muito tempo e muita coisa aconteceu..,. mas também não aconteceu, porque o projeto não "decolava".
O passo decisivo para concretizá-lo foi finalizar o roteiro e oferecê-lo à Companhia das Letras apenas com alguns layouts, em 2004, com a promessa de finalizá-lo a tempo para o centenário do 14-bis em 2006.
E os outros livros foram decorrência dessa atitude de firmar um compromisso e, dessa forma, me obrigar a terminar a HQ num prazo previsto.
2) SGROI - O governo passou a incluir HQs nas listas de programas de compras governamentais e o Jabuti de Melhor Livro Didático e Paradidático, nesta 50a edição, foi concedido a uma HQ. Tenho a impressão de que muitas editoras cujo foco está na escola e que antes enxergavam HQs como um mercado paralelo aos livros, vão começar olhar para este filão de modo diferente, você não acha? Gostaria que você comentasse um pouco a respeito desse merecido e, a meu ver, tardio reconhecimento das HQs como instrumento em sala de aula e a importância das HQs na formação de leitores de textos e imagens.
SPACCA - Sabe, tenho estudado a história dos filmes, gosto de ver o making of no final dos DVDs.
E percebo que, em todos os gêneros, as coisas quando acontecem dependem de uma série de contigências, de limites e oportunidades de cada época.
Acabei de ler "100 anos de Western" do Primaggio Mantovi. O bangue-bangue passou por crises de 10 em 10 anos.
Uma época estava no auge, e logo depois vinha uma mudança que o ameaçava - o filme sonoro, os filmes de guerra, a concorrência da TV.
É uma coisa muito mutável mesmo.
Depende, em parte, do desejo de investimento de produtores, da idéia que eles têm do que vende, do mercado, do que o público gosta.
E houve subgêneros muito distintos, desde o western classe A mais adulto e caprichado, o western B comercial e juvenil para entretenimento de massa, o western desmistificador (equivalente à HQ underground) etc.
A HQ passou por um desenvolvimento parecido. Já foi um grande produto de massa, gerou algumas obras de arte, quase morreu, ressuscitou.
No estágio atual, o quadrinho de autor, no Brasil, depende muito de compras do governo. Assim como o grosso do livro infantil.
Já não é uma revista de banca, e a banca de jornais virou um mini-shopping de conveniências.
Já não é um dos dois entretenimentos da molecada (o outro nos anos 30-50 era as matinês de cinema), hoje tem dezenas de alternativas de diversão e aventura, tanto em produtos como games, como em atividades que vão sendo criadas espontaneamente na internet.
Por isso a HQ tende a ser um produto especializado, caro, direcionado e quase de luxo. As edições são muito caras, e ainda assim dão um retorno muito pequeno ao autor.
Para que as crianças tomem conhecimento do livro em quadrinhos, a compra pelo governo e distribuição nas bibliotecas públicas tornou-se o canal mais importante.
E uma das maneiras de dar utilidade escolar à HQ é escolher temas históricos e bem conhecidos - Santos-Dumont, D.João, o Alienista etc.
Um tema famoso pode ser abordado de forma original. O tema ajuda a vender, mas a abordagem única é a marca do autor.
Não gosto de pensar que a finalidade do nosso trabalho seja estimular a leitura dos originais - eu não li Asterix para saber mais sobre a antiguidade e os romanos, li porque gostava.
Mas ter lido, por exemplo, Mowgli em quadrinhos da Disney, me fez interessar-me em ler o original de Rudyard Kipling (traduzido por Monteiro Lobato).
Eu já tinha o hábito de leitura, a gente pega isso pelo exemplo de ver adultos que lêem.
Mas quadrinhos e adaptações em filme e desenho animado me levaram a ler Júlio Verne (Vinte Mil Léguas Submarinas e outros), Dumas (O Conde de Monte-Cristo), Bram Stocker (Drácula), Melville (Moby Dick) etc.
O filão histórico pode ir abrindo caminho para acostumar alunos e professores com a narrativa dos quadrinhos, tanto nos gêneros como em estilos autorais.
Também, espero, mostrar aos especialistas que só escrevem a enxergar outras possibilidades de expressão do conhecimento.
(e não só isso, mas experimentar outras formas de pensar o assunto; porque contar História em HQ te obriga a fazer perguntas que às vezes ao historiador não ocorre fazer).
E quem sabe, sensibilizar um ou outro leitor para que, no seu tempo, encontre novos caminhos e oportunidades para fazer HQ ou cinema inspirado no que estamos tentando fazer agora.
3) SGROI - Você citou o Asterix, personagem de quem eu também sou grande fã. Quais são os personagens e profissionais que influenciaram seu trabalho? O seu estilo sofreu grandes mudanças no decorrer da sua carreira? E o humor, como ele acaba surgindo no seu processo de criação?
SPACCA - A lista é muito grande... pois começa na infância, com desenho animado e quadrinhos Disney, gibis do Maurício de Sousa e os livros do Monteiro Lobato.
Mas tem uma infinidade de personagens de TV, desde desenhos como Pica-Pau e Scubidu, a atores de carne e osso como Abbott e Costello e Os Três Patetas.
Quase tudo cômico, ou aventura cômica. O humor sempre esteve presente.
Dentre os desenhos animados japoneses, "A Princesa e o Cavaleiro" de Osamu Tezuka era um dos favoritos.
Os desenhistas hispânicos da revista "Kripta" (José Ortiz, Luiz Bermejo e outros) também me impressionaram muito.
A revista MAD e seus artistas foram uma influência fundamental na passagem para a adolescência: Mort Drucker, Aragonés, Al Jaffee, Don Martin. Fo iaí que eu conheci
Na adolescência, os chargistas políticos - Henfil, Ziraldo e Angeli - se tornaram mais importantes, e minha carreiar de cartunista na Folha de S.Paulo (1985-1995) reflete isso.
Mas teve alguns artistas menos conhecidos que exerceram uma influência muito forte, que aparece mais no meu trabalho atual.
Um deles é José Lanzellotti que ilustrava livros de folclore. Eu lia e admirava muito uma coleção chamada "Histórias e Lendas do Brasil", com texto de Gonçalves Ribeiro e "contadas" pelo palhaço Arrelia. Outra obra é "Brasil, Histórias, Costumes e Lendas", em que o Lanzellotti desenhava com perfeição os trajes e utensílios do vaqueiro nordestino, a pintura corporal dos índios do Xingu etc... é um livro de referências muito bem ilustrado, o artista viajava e pesquisava essas coisas in loco. Ele também fez quadrinhos na revista "Crás" nos anos setenta e lançou uma revista chamada "Curupira".
Outro é o desenhista português radicado no Brasil Jayme Cortez. O Cortez lançou livros didáticos de desenho, nos quais ele reunia uns 30 desenhistas ativos de seu tempo. Conheci o Cortez mais por esses livros do que pela obra impressa em revistas. Seus livros "Mestres da Ilustração" e "A Técnica do Desenho" são verdadeiras enciclopédias da nossa arte, e além disso é um registro vivo dos artistas e de seus processos de trabalho.
E preciso falar também da HQ "Os Bandeirantes", publicada na Folha nos anos 70, por Moretti e Nicolletti. É algo que merecia uma republicação. Seria uma tentativa de fazer um Asterix brasileiro, mas tem uma levada de cartum, era muito engraçado e os personagens eram ótimos. Os personagens indígenas tinham nomes de frutas, sem a primeira letra (Oiaba, Anana, Acaxi etc).
Quanto ao estilo, depois que saí da "Folha", achei que tinha emburrecido muito no desenho... e voltei a estudar anatomia e técnicas mais elaboradas, que me permitiram desenhar o "Santô e os Pais da Aviação" e os trabalhos posteriores. Nos últimos anos, tenho procurado aprender com os mestres dos quadrinhos clássicos do século XX, como Alex Toth, Joe Kubert, Giraud (Moebius), Millazzo e outros. Talvez não chegue lá, porque realmente são feras do desenho. Mas a intenção é essa, não é ter mestres "atrás" de onde tirei o meu estilo, e sim "à frente", como um ponto de perfeição para o qual eu seja atraído e me faça desenhar cada vez melhor.
4) SGROI - Quando eu era adolescente, folheei um livro do Belmonte, uma espécie de livro de referência do período colonial. Havia pouco texto, a idéia principal era fazer um relato visual daquela época. Fiquei fascinado com aquilo, pois, até então, eu nunca havia parado para pensar que a ilustração podia cumprir essa tarefa, a de informar e ser usada como ferramenta para se estudar história. Quando a gente folheia o Santô, o Dom João e o Debret, nem dá para imaginar o quanto de pesquisa visual essas obras devem ter demandado (afinal, como as histórias se passam em determinados períodos históricos, cada detalhe narrado visualmente faz parte da argumentação, uma gravata não é simplesmente uma gravata, tem que ser a gravata daquele período, o que nem todo mundo acaba percebendo). Gostaria que você falasse um pouco do seu processo de pesquisa e a responsabilidade que as imagens adquirem nese tipo de narrativa.
SPACCA - Esse livro do Belmonte pode ser o "No Tempo dos Bandeirantes" ou, talvez mais provável, sejam cópias que ele fez do Rugendas (pois é um livro com pouco texto). O "No Tempo" tem mais, e descreve ferramentas e armas, comenta mapas etc. O Belmonte foi cartunista e historiador, é um ídolo, sem dúvida.
Quando fazemos a transposição de um relato histórico para um meio narrativo artístico (como um filme, uma peça de teatro, um poema ou HQ), por um lado precisamos deixar muita coisa de lado. Porque a obra de arte possui uma unidade que o relato histórico não precisa ter - ele só precisa ser um registro preciso de tudo o que aconteceu dentro de um certo período e relativo ao tema. Então o certo é cortar partes que "atrapalham" a unidade (como Homero ao recontar a Guerra de Tróia na Ilíada).
Por isso Aristóteles dizia que a Poética (que continha a arte narrativa) era mais "filosófica" do que a História, pois captava a essência e por isso mesmo era mais universal.
Então ocorre uma redução de informação escrita.
Por outro lado, o meio visual exige detalhes que o escritor talvez não tenha sequer pensado.
(assim como a narrativa dramática ou poética desdobra as informações em diálogos).
E isso amplia formidavelmente o horizonte de pesquisas.
Por exemplo, quando precisei mostrar que D.João estava indeciso se fugia ou não para o Brasil, eu precisei desenhar uma reunião com ministros.
E como eles se reuniam? Em torno de uma mesa, como se fosse uma reunião de executivos modernos?
Não, as reuniões eram solenes. O príncipe no trono, os ministros e qualquer visitante de pé, entrando e saindo sempre de frente para o regente.
Você tem que desenhar o local. Criados, guardas. Será de dia? Será de noite? Como a sala era iluminada?
Como são os tratamentos pessoais? É Vossa Alteza real ou Sua Alteza Real?
E as perguntas se multiplicam, uma coisa puxa a outra.
Quando um chargista vai representar a invasão de Portugal pela França, ele pode desenhar Napoleão pisando no mapa de Portugal, ou comendo uma fatia do globo terrestre.
Ser chargista é a coisa mais fácil e cômoda do mundo...
Não precisa nem entender de política e economia, ele desenha um abacaxi e pronto.
Mas numa HQ, você precisa desenhar a cena acontecendo. E quem invadiu não foi Napoleão pessoalmente, foi o general Junot. E como eram os uniformes? Como era o terreno?
Estava chovendo? etc.
Todos esses detalhes são importantes não só numa reconstituição para os quadrinhos, mas para o próprio historiador - porque a marcha do exército para Lisboa de fato enfrentou chuva e teve que atravessar montanhas, chegando em frangalhos. E isso tudo influencia as decisões dos personagtens envolvidos.
Por isso, um historiador não pode se ater apenas a documentos escritos. Veja que os livros da Lília Moritz Schwarcz, com quem fiz o "D. João Carioca", sempre usou muitas ilustrações, pinturas e até propagandas em seus livros, tanto como registro de fatos, como pelo sua carga cultural e simbólica.
Outra preocupação nossa é buscar ser preciso, o quanto for possível, na dosagem da interpretação dos fatos: evitar os maniqueísmos, evitar mostrar só o lado bufão ou só o heróico; retratar de modo abrangente e complexo, procurar não perder o nexo com a realidade.
Resumindo: nosso trabalho é artístico, mas também tem o compromisso de ser fiel a coisas que de fato aconteceram e cujas consequências estão presentes no nosso mundo atual.
Homero criou a Ilíada, mas não inventou a Guerra de Tróia...
SPACCA pergunta, SGROI responde:
1) SPACCA - Li o teu Lobisomem e percebi que você usa com muita desenvoltura linguagem de revista, faz uns boxes à la Superinteressante ou do tipo "Você Sabia?". Ou seja, você parece pensar na edição inteira, tem um lado editor aí. Fiquei com a impressão de que você pensa em como o leitor vai receber aquilo, como e onde diverti-lo, como manter a leveza. É uma mistura de informação com diversão. Estou certo? Fale sobre isso...
SGROI - Sim, é isso mesmo! Uma vez o Milton Rodriguez Alves, para quem trabalhei no meu início de carreira, disse que todo ilustrador tem um editor de arte dentro de si. No meu caso, acho que tenho também um editor de texto :o).
No livro do Lobisomem, a dinâmica da narrativa se dá por meio do diálogo intenso entre o texto e a ilustração. Não por acaso, a idéia inicial era fazer uma história em quadrinhos. Depois, acabou virando uma "história em quadrões", com cada página simples ou dupla introduzindo a informação por meio textual e a ilustração complementando ou concluindo com uma piada. Assim como em uma HQ, o texto sem a ilustração não faria o menor sentido (ou não teria a menor graça), tal é a intensidade deste diálogo. Aliás, olhando os rascunhos originais, este diálogo está presente desde o início, ou seja, não criei o texto primeiro e depois criei as ilustrações; texto e ilustrações nasceram juntos, tal como eu faço em roteiros de HQ. Os boxes surgiram da nescessidade de passar algumas informações reais (datas, fatos históricos, etc), uma vez que o livro participa de uma realidade ficcional - a crença na existência dos lobisomens. Outro aspecto que me levou à decisão de permear o texto com os boxes informativos foi a possibilidade de criar uma teia de relações entre assuntos que, à primeira vista, parecem não ter relação, como a descrição das características de quem vira lobisomem e a questão do preconceito (o caso do amarelão e do Petrus Gonsalvus), a disseminação do mito e o período das grandes navegações, a lobisolândia e a fundação de Roma, etc. Mas tudo de forma engraçada (que é o meu jeito de contar as coisas). Me lembro que nos livros didáticos que eu usava na escola tinha um monte de coisas sobre folclore, mas tudo muito chato, solene demais, às vezes até com um ranço nacionalista. Isso causava em mim um distanciamento dessa experiência com os monstros folclóricos, achava que aquilo chato demais, legal eram os monstros que apareciam no Ultra Seven, lembra? Por mais que os livros afirmassem que "o folclore é você, sou eu, somos todos nós" (conforme um jogral que tive de decorar na quarta série), eu não interiorizava aquilo. Só muito tempo depois é que eu percebi que os monstros do nosso folclore são muito legais, o jeito que alguns livros livros (e demais mídias) falam deles é que nem sempre o são. Daí a minha preocupação em tornar o livro, antes de mais nada, uma experiência divertida para que lê.
2) SPACCA - Você me disse que trabalhou como roteirista, depois resolveu desenhar. Como foi isso? Como foi desenvolver seu estilo? Você buscou uma solução de desenhar rápido? Preferia continuar só escrevendo?
SGROI - Desde criança eu gosto de desenhar, sempre esteve na veia. Por volta de 1988, conheci o Ricardo Roásio, um grande desenhista das histórias da Turma da Mônica, que me deu a maior força para começar a desenhar HQs (este sempre foi o meu sonho). Mas o meu traço ainda precisava amadurecer muito, então, resolvi arriscar e escrever uns roteiros, na esperança de ganhar algum sustento (já estava bem grandinho para viver às custas da mãe). Para minha surpresa, o Ely Barbosa gostou das minhas histórias e passei a trabalhar para ele. Depois, consegui outros trabalhos e assim fui levando até 1990, quando o mercado de quadrinhos foi pro buraco. Os trabalhos minguaram e minhas opções foram reduzidas a escrever para a revista da Xuxa, da Angélica ou do Gugú. Juro que eu tentei, mas travei. Nas histórias da Angélica, por exemplo, recebi a instrução de que ela nunca poderia aparecer irritada, deveria sempre estar sorrindo, ser amiga das crianças e aparecer cantando alguma das músicas dela ("Vou de táxi" estava arrebentando). Bom, pra encurtar a história... não deu! Quando escrevo, não consigo manter um distanciamento profissional dos personagens, eu preciso ter algum tipo de ligação para que eu entenda como eles reagiriam diante de uma dada situação. Fiquei parado por um bom tempo, até que o Kanton (um grande profissional e que foi um dos criadores do Lollo "fofinho") me recomendou a um estúdio que trabalhava com livros didáticos. Nessa altura, meu traço já estava mais aperfeiçoado, de modo que eu comecei a ilustrar. Meu estilo é uma história à parte. Naquela época, meu desenho era bem certinho, todo calcado em Model Sheets (influência dos quadrinhos). Na verdade, ele foi (e ainda é) causa de grandes sofrimentos emocionais e brigas interiores. Custou chegar até o meu traço atual. Minha aflição maior sempre foi a dificuldade em me adequar a modelos - bolinhas com divisões de proporção, estruturas de bonecos, etc. Simplesmente não consigo fazer nada disso, é como se, em vez de colaborar, essas coisas funcionassem como amarras. Levou anos, anos e mais anos até eu me dar conta de que aquela rigidez toda só me atrapalhava, soltar de vez a mão e desenhar por instinto. É claro que antes de desenhar alguma coisa eu crio uma estrutura rústica, estabeleço algumas relações e proporções, mas nada muito rígido. Sigo mais o instinto e procuro brincar com formas e distorções, buscando uma harmonia de traços e equilíbrio de composição. Aboli o ponto de fuga e minhas perspectivas são completamente distorcidas e assimétricas. Isso, claro, em livros que permitem esse tipo de liberdade, normalmente os de literatura e alguns paradidáticos, cuja colaboração do ilustrador deve ser autoral para que o resultado do livro como um todo seja interessante em termos criativos e estéticos. Quando desenho livros didáticos a história é outra, faço estruturas mais elaboradas, perspectivas certinhas e crio cenas mais contidas e bem menos viajadas, de modo a me adequar às exigências dos clientes e do material. Ainda estou me aperfeiçoando mas, hoje, estou mais seguro e meu traço já não me causa tanto desconforto e encanação como a uns seis ou sete anos atrás. Quanto à rapidez do desenho, depende do dia. É certo que eu desenho rápido, sobretudo por conta de manter o aspecto solto e espontâneo do meu traço (quando eu elaboro demais, sinto que o desenho começa a ficar duro, sem vida). De qualquer modo, chegar até determinados resultados às vezes implica em altas crises, dezenas e dezenas de rascunhos jogados fora até chegar no resultado que eu quero. Tem dia que é só sentar e desenhar, mas tem outros... Sob o ângulo da produção, o computador ajudou bastante na rapidez, principalmente quando recebo encomendas de ilustrações para livros didáticos, que entram de manhã e precisam sair à noite :o). Hoje, para este tipo de material, esboço, finalização do traço e pintura, faço tudo na máquina (Photoshop). Porém, após 12 anos de computador, estou voltando para a prancheta. No Livro do Lobisomem usei o bom e velho nanquim com aquarela líquida e nos próximos dois livros de literatura que estou produzindo atualmente também.
Quanto a preferir só escrever, não, não creio que isso me realizaria totalmente. Aliás, se eu não ilustrasse, acho que eu nem escreveria, pois normalmente eu escrevo minhas histórias como uma espécie de roteiro de HQ, crio texto e imagem juntos, a imagem é parte indissociável do texto. Escrevi apenas um texto sem imagem nenhuma, que está guardado aqui na gaveta. Futuramente, quem sabe, penso em convidar alguém para ilustrar, uma vez que leio, releio e não consigo imaginar o meu desenho ali. Isso em se tratando de textos ilustrados pois, curiosamente, HQs eu só penso em escrever, não em desenhar. Vai entender...
3) SPACCA - O Lobisomem é um monstro universal, até em países que não tem lobo como no nosso caso (logo-guará não vale, aquilo parece um cachorrinho do mato). Outros seres fantásticos como os vampiros não se integraram no nosso folclore (o Chupa-Cabra também não vale...). Saci e Curupira só tem aqui... se você quisesse fazer uma coleção de monstros, ia ser difícil achar outros que como o homem-lobo são brasileiros e internacionais, não é?
SGROI - Bom, tem a bruxa que, embora tenha traços completamente estrangeiros no imaginário da maioria das pessoas, possui versões ou características regionais aqui no Brasil bastante interessantes. Minha avó mesmo, que veio da Bahia e que a gente chamava de "vovó-véia" referia-se à bruxa como "catimbozeira", o que fez surgir na minha cabeça uma figura completamente diversa da bruxa européia, embora a raiz esteja lá na Europa mesmo. Essa "digestão" pela qual a bruxa passou no imaginário da minha avó e chegou até mim fez com que eu ficasse tentado a retratar a bruxa não com a indumentária clássica com que ela é retratada na maioria das vezes (chapéu, vestido e botas pretos), mas com um ar mais nordestino, uma velha com lenço na cabeça e vestido esfarrapado, com estampas e rendas, coisas que costumo associar mais ao Brasil. Em vez daquela casa velha típica da europa, um casebre de pau à pique, em vez de caldeirão, uma panela de barro e por aí vai. Incrível como uma única palavra desencadeia esse mundaréu de concepções imagéticas. Já o vampiro, de fato, eu não encontrei nada que indicasse a existência de algum "temperinho brasileiro", prevalecendo sempre a versão estrangeira. O Saci, apesar de ter uma extensa bibliografia disponível, assim como o lobisomem, tem uma porção de aspectos interessantes que costumam ser deixados de lado, como a convergência com o Yasí Tere do Paraguai, com o Yasy Yateré da Argentina e com um o personagem de um conto de encantamento português que não lembro o nome, mas que é citado em um livro publicado em Lisboa no século XIX, escrito por Teófilo Braga. Tem uma convergência também com uma criatura chamada Ciapodo que, segundo o Câmara Cascudo, é citado no História Natural, do Plínio, lá no ano 77, é mole? (obs.: falei "Plínio" com essa intimidade toda, mas não sou nenhum expert em história greco-romana, rá, rá, rá!). Resumindo, acho que com figuras universais, realmente vai ficar difícil criar uma série de livros, mas cavocando a gente acha um monte de relação dos bichos brasileiros com os bichos lá de fora. Aí é que a coisa começa a ficar interessante. Tem também o lado de que o que me motivou a fazer o primeiro livro e ter interesse em fazer outros é a questão de muita coisa estar se perdendo, como é o caso do Papa-figo e do Mapinguari, que muita gente já não conhece mais (pelomenos aqui em São Paulo). O homem do saco também já anda meio esquecido, então, creio que a motivação maior que eu teria em prosseguir com essa coleção seria o de apresentar estas figuras para a molecada de modo que elas sejam contextualizadas aqui no Brasil, mas de um modo sutil, como eu procurei fazer no Lobisomem. Por exemplo, na página em que eu falo da dieta do lobisomem, o texto não menciona nada a respeito, mas a ilustração procura deixar claro que ele está comendo em um daqueles botecos clássicos, que (creio eu) está no imaginário daqui; não é uma lanchonete tipo MacDonald´s, é um daqueles botecos típicos do interior de São Paulo (no caso, a foto que eu usei como referência é de um boteco lá da cidade de Brotas). Assim é também com os demais cenários, roupas e coisas que procurei retratar, tudo sutil e discreto, mas remetendo ao que é nosso, embora o bicho seja universal.
4) SPACCA - Você gostaria de ter um personagem fixo, como um Garfield para desenhar a vida inteira, ou prefere projetos um diferente do outro? Você tem cara de preferir variedade.
SGROI - Acertou em cheio! Prefiro projetos diferentes, sem dúvida. Eu já tive um personagem fixo, o Dr. Eco, a quem me dediquei com exclusividade por três anos (1996-1998). Desde que a revista acabou, nunca senti saudade, nem da grana fixa e nem da comodidade de não ter que correr atrás de outras coisas. Obtive muitas conquistas graças ao Dr. Eco e sempre lembro dessa fase com muito carinho e gratidão mas, sei lá, ficar fazendo só uma única coisa por anos a fio, descobri que comigo não rola. Acho que ficaria meio frustrado se eu fosse lembrado somente por um único trabalho, ou que o meu trabalho se resumisse a apenas desenhar os mesmos bonecos, com a mesma técnica, a mesma fórmula e o mesmo estilo. Como todo geminiano, sou irrequieto e gosto de várias coisas acontecendo ao mesmo tempo, me sinto vivo assim! Gosto de sentar no computador de manhã, desenhar e pintar no Photoshop mas, à tarde, sento na prancheta e desenho com lápis, nanquim e pinto com aquarela, faço colagem, desço no jardim, fotografo uma planta ou um pedaço do chão, jogo no computador e crio uma textura com aquilo... Gosto de pegar um texto ainda em Word e "perguntar" para ele: qual a técnica que devo usar aqui? Que tipo de traço? Mais refinado ou mais rústico? Mais fofinho ou mais solto? Cada texto é um desafio, pede um tipo de tratamento e postura, e eu adoro isso. Um dia nunca é igual ao outro.
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