quarta-feira, 23 de junho de 2010

SP: Quintas (17)

SARAMAGO

Ouvi a sua voz. Eu estava num deserto, talvez, ou num sonho. Mas hoje, um dia de triste notícia, compreendi que a vida se renova a cada amanhecer, a cada final de entardecer.

As árvores que passam, as folhas a se despreenderem, o pólen lançado na ventania executando valsas invisíveis para os olhos embotados de cotidianos. Plantas percorrendo distâncias em suas genealogias poéticas e verdes. Plantas que atiçam sorrisos sob a chuva leve.

A vida se renova. O que morre renasce, e esse é o mistério. Renasce noutros corpos. A ideias serpenteiam num fluxo lampejante cobrindo de verbos as almas que almejam embelezar o mundo. O pensamento vaga e voa, sobre capinzais, bambuzais e varais.

A vida se renova. O que morre renasce noutros sonhos, germina, e morre para renascer.

Seu nome há de ser pronunciado em aldeias, em vilarejos, em acordes, em rabiscos, e será esquecido e relembrado e você estará presente no ciclo das palavras doces e esfomeadas.

E seu rosto será redesenhado com toda candura, todas as chuvas leves, toda a doçura, e a meiguice tardará, e virão temporais, e arrogâncias, e novos quebrantos, e sinas serão passageiras nas vidas insensíveis e nas transbordantes, e sinos badalarão. E temporais de incertezas, de amarguras, de rotinas estéreis...

E a louça, o vidro, o odor das flores banais, das orquídeas efêmeras, e das flores inesquecíveis, e o café requentado, a sopa quente, o pão saboroso saciando a fome, as calçadas...

E o cacto, e a fragilidade de miosótis, e dirão: aquele que ganhou o Nobel, e o seu idioma sobreviverá e se fortalecerá com o sangue pulsante nas feiras, nos mercados, nas gôndolas, nos mocambos, nos barcos, nas festas, nas estações ferroviárias, nos amantes nos quartos de motéis, nos encontros casuais, nas crianças correndo, rompendo o vento, abrindo passagens, rasgando capinzais, saltando valetas, cortando canaviais como vultos incandescentes faiscando em cerrações, em neblinas.

E só por uma gota de orvalho deslizando suavemente na folha lisa, e só pela fumaça do forno, pela poeira nos olhos, pelo manjericão exalando seu frescor, e só pela lentidão das azaléias, só por essas coisas, valeram as suas palavras.

MARCIANO VASQUES

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