segunda-feira, 15 de setembro de 2008

RJ: A ficção da tese - artigo de Gustavo Bernardo



Este artigo do professor e escritor Gustavo Bernardo foi publicado no suplemento Prosa & Verso do jornal O Globo, no último sábado, dia 13 de setembro.

A ficção da tese

“A literatura é mais importante do que a música, a pintura, o teatro e as demais artes.” É mesmo? Dito assim, parece absurdo — e é. No entanto, trata-se de uma das premissas da escola. A condição de arte eminentemente verbal empresta à literatura prioridade no currículo, na carga horária, nos exames, no corpo docente. Essa prioridade, todavia, nem sempre faz bem à literatura.

Para transformá-la em uma disciplina “como as outras”, ensina-se literatura para se ensinar ou história ou língua ou cultura ou até mesmo patriotismo, escamoteando-se o seu caráter artístico.

“A literatura é apenas um objeto de estudo.” Bem, talvez. Dito assim, já não parece tão absurdo quanto a sentença anterior. Se a literatura é uma disciplina como as outras, então ela é um objeto de estudo como os outros. No entanto, se a literatura é arte, parente muito próxima dos mitos e das religiões, então ela é menos um objeto de estudo do que uma morada existencial. De modo bem diverso das demais disciplinas, a literatura pode se tornar apaixonante tanto à razão quanto à emoção de uma pessoa. Por quê? Porque ela deliberadamente suspende a realidade a um nível ao mesmo tempo íntimo e superior — superior porque fruto assumido da invenção humana. Nessa perspectiva, uma reflexão sobre a literatura que preserve a paixão original exige menos fazer teoria da literatura do que buscar a teoria na literatura.

Devo abdicar de controlar a literatura com minhas categorias lingüísticas ou históricas para deixar emergir seu enigma sem resolvêlo — sem destruí-lo. “Quantos de nós começamos a fazer Letras, a estudar literatura, porque gostávamos de ler e sobretudo de escrever?” Puxa, precisava lembrar disso? Dirigida aos profissionais da literatura na escola, essa pergunta não é absurda, mas sim incômoda. Porque a sua resposta é: muitos, quiçá a maioria. E porque ela gera uma outra pergunta: quantos de nós paramos de escrever já na faculdade ou pouco depois, quando começamos a dar aula? A resposta à segunda pergunta é igual: muitos, quiçá a maioria. Isso acontece, talvez, porque transformamos o objeto da nossa paixão em apenas um objeto de estudo, supondo que assim dominaremos seu enigma. O preço a pagar é alto: a literatura deixa de ser arte para nós e nossos alunos e se torna uma “matéria” (na melhor das hipóteses, chata).

No entanto, há resistências.

Há professores e escolas e universidades que não esquecem que a literatura é antes de tudo arte: desafio e enigma, paixão e ilusão. Isso acontece em vários níveis — por exemplo, quando uma pós-graduação em literatura aceita um trabalho de ficção como tese. Essa proposta, como demonstram os finalistas do Jabuti e do Portugal Telecom, costuma ser bem sucedida, gerando trabalhos de ficção ousados e conseqüentes porque frutos do diálogo tenso com a reflexão acadêmica. Isso se chama: produção de conhecimento e de cultura.

Mas há quem não concorde — talvez alguns daqueles que se esqueceram do porquê quiseram estudar literatura.

Argumentam que um trabalho de ficção não é um trabalho científico, como se todo trabalho científico não fosse sempre um trabalho de... ficção. A hipótese científica é sempre uma suposição, um “como se” fosse para ver se pode ser assim mesmo. A estrutura discursiva da literatura stricto sensu difere da estrutura de um tratado de Física, mas o princípio do “como se” anima ambos os discursos.

Por isso, mesmo em termos de teoria do conhecimento, mesmo em termos epistemológicos, não procede a resistência a trabalhos de ficção como tese de pósgraduação em literatura.Não procede, mas se explica: explica-se pela dificuldade óbvia, reconheço, de orientar e avaliar um trabalho de ficção, quando os critérios se tornam bem menos seguros. Todavia, há critérios: os mesmos que utilizamos para distinguir se uma obra literária é menor ou maior, se é obra-prima ou não. Ainda há outra explicação, que reluto em escrever mas escrevo: ressentimento.

Se abandonei minha paixão no início do caminho para conquistar minha posição acadêmica, como esse fedelho que não deu todas as aulas que já dei e não corrigiu todas as provas que já corrigise atreve a fazer da sua tese um romance, enquanto eu larguei meus poemas em passado remoto? Puxa, também não precisava ofender. Colegas, calma, não se ofendam tão rápido; eu sei que essa carapuça não serve a todas as cabeças, há tantos outros motivos para resistir à arte na academia. Mas nós sabemos que ela serve sim em algumas cabeças: aquelas que justificam o ditado popular nefasto que nos persegue, até porque não de todo falso: “quem sabe, faz; quem não sabe, ensina”. Por isso, há que continuar fazendo — fazendo arte! — para dar o melhor exemplo a nossos alunos; da mesma forma, há que continuar estimulando quem faz — arte! — para recuperar não apenas para a literatura, mas também para o magistério, a sua condição original de... arte.

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