domingo, 2 de janeiro de 2011

SP: Quintas (41)

OS QUE NUNCA SUBIRAM A SERRA


No roseiral da manhã vagava a rosa em minha mente quando o avô Pedro vagarosamente caminhava pelas ruas de Ouro Fino.
A visão de seus passos com as folhas caindo e atapetando as pedras foi uma das primeiras dádivas que os meus olhos receberam.
Na calma da rua os gansos partilhavam conosco o caminho.
Anos mais tarde, ao observar a lentidão das azaléias em seu crescimento recordei-me da sua silhueta num ocaso de formidáveis nódoas se desprendendo das folhagens que beiravam a rua. Tive a impressão de rever o cavalo abanando a cauda e o capim orvalhado estendido pelo campo onde ele a cismar contemplava as raízes da sua história.
Meu avô era um sábio. A sua conversa mascada de um requinte que enfeitava-me a aula por tanta simplicidade.
Tempos depois o reencontrei em Suzano. Quis perguntar sobre as conversas antigas com o meu pai. Ele deu-me uma alta gargalhada, ofereceu-a generosamente. Ofertou o seu riso largo para o ar de Suzano. Falou-me que um dia seria um pássaro.
Foi a última vez em que o vi.
Mês depois recebemos a carta que falava do vôo do nosso querido Pedro.
A avó ofereceu-me um dia uma fatia de pão com um excesso de manteiga que encheu meu coração de alegria. Jamais esqueci da sua mão trêmula, repleta de fibras, nervos e manchas, a me ofertar o pão. Traduzi aquele gesto como uma das formas que o amor encontra para se manifestar.
Quando ela ficou viúva fugiu para um sitio. O seu marido foi morto pela polícia do governo e foram atrás dela, que era acusada de comunista.
Quando a policia apareceu no sitio procurando por uma viúva encontraram-na com o avô Pedro que a apresentou como sua companheira. Eles foram deixados em paz. Os homens procuravam uma mulher sozinha.
Eles sempre viveram entre Santos, Ribeirão Pires, Ouro fino e Suzano. Jamais conseguiram subir a serra por completo. Lembro-me de ouvir dizer que eles moravam em Suzano e voltavam pra Santos, depois moravam em Cubatão e iam para Ribeirão Pires, depois estavam novamente em Santos. Comecei a compreender que na verdade eles nunca subiram a serra para valer.
Às vezes me punha a imaginar como seria o meu avô vivendo numa cidade com edifícios altos, trânsito veloz e barulhento, gente correndo nas calçadas, ar difícil de respirar. Todos iriam pedir para ele sair da frente e ele iria tossir sem parar.
Na porteira do Brás, na Praça Clóvis, no Parque Dom Pedro, na Avenida São João. Bem que eu quis algumas vezes que ele estivesse comigo, para entrarmos num cinema, para um churrasco grego, uma crush, para eu lhe apresentar a cidade. Porém sempre me lembrava de que ele era feito das folhas das matas que beiravam as suas andanças e da neblina das suas manhãs.
Quis também muitas vezes que a minha avó pudesse estar comigo diante de uma vitrine, entrando numa loja, experimentando um vestido novo. Até quis que ela se sentasse comigo nas escadarias do Teatro Municipal! E quando chegou o Metrô, se ela ainda estivesse viva eu a teria buscado para andar por baixo da cidade.


MARCIANO VASQUES

Nenhum comentário:

Postar um comentário