A história de Heitor
Cap. III
A pelagem de Heitor já estava mudando a cor para um marrom dourado. Isso lhe seria muito útil para a camuflagem no capim alto do cerrado. Mas as mudanças apenas começavam. Ah! Aquele jeito de filhote indefeso, com as orelhas caídas e um olhar doce, estava desaparecendo. Surgia um jovem lobo de estirpe, as orelhas em pé, olhar atento, investigando o ambiente
Viver perto do rio era uma festa. Correr pelo raso, forrado de pedregulhos, espirrando longe a água limpa, a perseguir qualquer presa que se mexia – marrecas, aves aquáticas, peixes, moluscos –criava um rebuliço danado. O nado das marrecas era lento; já Heitor era rápido ao saltar e, com o treinamento, ia se tornando cada vez melhor caçador. Em terra, ele também aprendia a colher os frutos da lobeira, importante para a sua saúde e sobrevivência, e alguns outros da região, pois muitos eram os que podiam lhe servir de alimento. Ele também perseguia ratos ou codornas, quando encontrava alguma ciscando o chão.
Certo dia Lorena viu Heitor parado, observando alguma coisa. Ele não estava caçando... De vez em quando esticava a pata, mexia no capim e depois se afastava. A loba aproximou-se, seguida por
Hiran e Horácio, que andavam sempre mais perto dela. Heitor havia encontrado um ninho no chão e mexia nos ovos, mas quando rolavam, ele se assustava e recuava. Ao perceber que estavam bem próximos, querendo ser mais esperto, ele deu um salto, caiu sobre o ninho e os ovos estouraram, esparramando-se no capim, melando suas patas e seu focinho. O estrago já estava feito; os três irmãos dividiram o banquete e comeram até as cascas. Depois lamberam capim e as sobras do que havia espirrado no pelo.
Samantha espiava com interesse, enroscada em sua árvore de sempre, frustrada pelo fato de Lorena estar sempre junto dos filhotes, muito esperta em proteger suas crias. Mas ela ainda esperava por uma chance melhor. O território dos lobos era marcado com fezes e urina, um aviso para que os invasores ficassem longe de seu território. Mercúrio e Lorena também usavam sinais vocais, um uivo que ecoava longe – raouuuul..
O fim da tarde era o preferido para aquelas aventuras e, naquele dia, ainda houve outra, muito interessante. Eles estavam deitados no capim dourado e perceberam um movimento. Heitor foi o primeiro a ir atrás, mais esperto, como sempre. Era um calanguinho que ondulava pelo chão, tão rápido quanto podia. Heitor quase o perdeu, mas aquele era o dia dos lobos. Contra os três filhotes, o calango perdeu, pobrezinho; não teve chance. Nem houve caça à noite.
Aquele fora um dia perfeito.
Não muito longe dali, não o suficiente, acabara de mudar-se uma família de lavradores.
Enquanto, nos confins do cerrado, os lobos uivavam – raouuul, raouuul... – em sintonia com sua natureza, nos limites com território dos humanos, podia-se ouvir o latido dos cães – au! au, au,
au, au, au! – auuul...
Nilza Azzi
Nilza Azzi é escritora associada da AEILIJ regional de SP
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