Capítulo VII
Heitor permaneceu por ali, isolado, sem saber para onde ir. Esperava que um dos lobos aparecesse; algumas vezes subiu e caminhou um pouco pelo solo seco e cheio de fuligem, mas não havia direção a escolher; não sabia o que fazer. Impossível coletar e caçar, encontrar qualquer vestígio de alimento. Ele até raspou a terra, como se pudesse descobrir num buraco a entrada de alguns insetos e roedores, mas logo desistiu. Nem mesmo Samantha havia voltado para a sua árvore.
Na margem oposta, o barranco era muito alto e ele não encontrava um meio de subir. Enxergava apenas a parede de saibro sulcado e ressecado e algumas hastes da vegetação. O que seria aquilo? Depois de dois dias sem que aparecesse nenhuma ave, ele já esgotara o que havia de alimento nas águas rasas. Deve ter sido o instinto que o levou a descer o rio, como se o escorrer constante da água apontasse a direção a seguir. O fato é que ele começou a caminhar. E caminhou quase um dia inteiro até que finalmente encontrou passagem para o outro lado...
Ali, nada se parecia com o território que fora o lar de Heitor nas primeiras luas de sua vida. Até onde a vista alcançava, as plantas eram todas iguais, enfileiradas, trilhas que em nada se pareciam com as que ele percorrera com Mercúrio naquelas aventuras na busca por alimento. Havia uma passagem larga e longa – trilha de animais grandes – pensou Heitor. De um lado cresciam plantas parecidas com o capim da savana, de uma cor dourada, com hastes carregadas de sementes. Aquilo não lhe pareceu comida. Do outro, havia uma porção de árvores secas, sem folhas, ligadas por cipós muito ásperos, cheios de espinhos, que cresciam retos e esticados.
Além delas, havia uma porção de pequenos arbustos, com folhas de um verde brilhante e frutinhas vermelhas. Também não pareciam comida, mas o lugar era fresco, a terra cheirava bem e parecia abrigar algumas criaturas interessantes para um lobo; o seu olfato acusava a existência de pequenas presas que fugiam para o céu ou que se arrastavam pelo solo.
Por outras tantas luas, Heitor viveu naquele espaço, onde havia alimento e onde podia encontrar abrigo e água por perto. Ele bem que sentia falta dos vegetais e das frutas que se habituara a comer com Lorena, mas era um sobrevivente. A vida solitária, comum aos lobos-guarás, começara um pouco mais cedo por causa da queimada, mas ele estava preparado; era quase um adulto. Aos poucos foi se habituando ao novo território. Era muito diferente, aquele lado do rio, mas Heitor começou a percorrer distâncias mais longas e a dominar o espaço, como se fosse território seu, deixando aqui e ali as marcas que fazem os lobos para definir os limites. Começou as coletas à tarde e à noite, raramente durante o dia, mas continuava sentindo falta de coisas que encontrava na vasta variedade do antigo lar.
Estava quase amanhecendo; o lobo dormira sossegado num monte de capim acumulado ao pé de um arbusto da pequena mata. Ele percebeu sinais estranhos do outro lado do aceiro, no campo das plantas douradas. Perto de onde estava, havia uma pedra grande; ele subiu e se manteve alerta; espreitou à sua volta e ficou à espera do que viria. Suas orelhas viravam, suas narinas tremiam, pois alguma coisa se aproximava, vagarosamente, mais e mais. Antes que Heitor tivesse tempo de fugir, um animal enorme apareceu diante dele, não muito longe da pedra. A cor do seu pelo era bem igual aos campos onde estava, mas ele tinha umas manchas escuras - muitas manchas pretas, muito grudadas e muito parecidas, que não podiam ser causadas pela fuligem do solo queimado do outro lado do rio.
Acostumado a ser protegido dos perigos pela presença da loba que o criara, ele não tinha noção do que poderia acontecer; ele ficou paralisado por alguns instantes. A suçuarana passou a certa distância dele, com seus passos de felino, mal tocando o solo com as patas almofadadas, mirou-o e foi embora na direção do rio. Ela havia respeitado Heitor– ele ainda não o sabia – um lobo adulto. Heitor ainda cruzou com a suçuarana outras vezes, passando com uma presa entre os dentes. Sentindo-se mais confiante, ele decidiu vasculhar o outro lado do rio, saindo durante o dia, o que não era mais seu costume. Não avançou muito para o interior da terra queimada; foi percorrendo o trecho mais perto da margem.
Ainda não chegara a estação das chuvas e qualquer movimento levantava uma poeira negra. No meio da manhã, perto de um velho cupinzeiro salvo do fogo, deu de cara com um animal estranho, enfiando a língua comprida pelos furos de respiração. Era cinzento, com um focinho comprido de um lado e uma cauda comprida de outro; a única diferença entre o focinho e a cauda – analisou – é que a cauda tinha pelos bem mais compridos. Finalmente decidiu aproximar-se e levou um susto enorme.
– Olá! – saudou o estranho – Meu nome é Tinoco e o seu?
– Heitor – respondeu.
– Rá, rá, rá – começou a rir o tamanduá – e continuou rindo muito.
– Dobrado desse jeito ele parece um tatu-bola – pensou Heitor.
– De onde saiu um nome desses? – perguntou – Isto aqui é o cerrado! Rá, rá, rá!
E continuou a rir, enquanto algumas formigas aproveitavam para pular fora de sua língua pegajosa. A surpresa de Heitor era tão grande que ele demorou a responder; depois de tanto tempo isolado, encontrava uma companhia. Não uma ameaça, não uma criatura indiferente... Muito pelo contrário! Tinoco parecia animado e amigável. Ele já era um lobo adulto, mas muito jovem ainda e adorou aquilo; encontrar um possível companheiro de aventuras.
– Minha mãe que escolheu – foi o que disse um pouco envergonhado.
– Gosto estranho tem sua mãe, mas falaremos sobre isso depois. O que faz por aqui e por que está sozinho?
– Vê tudo isso queimado? Eu vivia deste lado do rio, um pouco mais acima. Quando o fogo tomou conta de tudo, na hora da fuga, enfrentei uma enorme sucuri e pulei para o rio, mas meus irmãos ficaram com medo, foram para outro lado. Lorena foi atrás deles. Depois que o perigo passou, procurei por eles, mas não os encontrei. Nunca mais vou achá-los – comentou.
Tinoco começou a rir novamente e Heitor ficou tão sem graça que mudou de direção e começou a se afastar.
– Lorena contava que veio de muito longe.
Já ia embora, com o rabo entre as pernas, mas virou a cabeça e repetiu:
– De um território distante...
– Espere, rapaz, não me leve a mal. É que nunca ouvi esses nomes por aqui. E onde vive agora? – perguntou.
– Na mata do outro lado do rio, mais acima. É um lugar estranho,sinto falta do lugar onde nasci, mas ali encontro comida e um bom lugar para dormir.
– Heitor, meu jovem, tome cuidado. Há muitos perigos neste lugar e cada vez mais perto de nós. De onde você acha que veio esse fogo?
E fez um sinal para que o lobo se aproximasse. Virou-se na direção das orelhas de suas orelhas e soprou pelo focinho estreito, bem baixinho:
– Dos humanos, garoto.
– O que são humanos? – perguntou – pois a separação da mãe havia acontecido um pouco antes da hora e Lorena nunca o alertara para esse perigo.
– Você vai conhecê-los uma hora qualquer e saberá como são. É melhor não confiar neles.
Começou a chover sem nenhum aviso. Os pingos muito grossos da chuva forte faziam barulho ao cair na terra ressecada, espirrando a fuligem negra. Os dois ficaram ali recebendo a chuva com alívio, na esperança de que logo brotassem da terra as plantas que serviam de alimento e embelezavam o cerrado. Foi uma chuva forte, mas rápida. Despediram-se logo que parou.
– Estou sempre por aqui, apareça quando quiser companhia – disse Tinoco – Gostei de você, garoto!
Heitor retomou o caminho de volta, abanando o rabo. Andou um pouco, depois olhou para trás, balançou a cabeça e disse:
– Também gostei de você, Tinoco.
Nilza Azzi é escritora associada da AEILIJ regional SP
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