QUEM LÊ ESCOLHE
Breves anotações críticas sobre o processo centralizado de escolha e compra de livros
Recentemente, a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo divulgou em seu site uma nota sobre um de seus processos de escolha, compra e distribuição de livros para as escolas de sua rede oficial. As informações ligeiras, ali presentes, sobre o processo todo davam conta de que a) houve inscrição de um grande número de livros; b) houve um primeira triagem; c) a seleção final apresentada já como definitiva continha um número muito pequeno de títulos, comparado com os inscritos e d) não houve nenhuma menção ao processo de seleção e nem apresentação gabaritada da equipe que fez a seleção dos livros.
Mais uma vez, repetiu-se nesse processo relatado pela nota o que vem sendo prática comum dos governos, a propósito de “política pública de formação de leitores”: a) um edital de compra de livros é aberto, ; b) as editoras inscrevem livros, atendendo ao que é demandado no edital, principalmente no que diz respeito ao tipo de livro; c) os livros são selecionados por uma equipe (desconhecida dos participantes do certame); d) os livros são comprados (por preços baixíssimos) e e) os livros são distribuídos para as escolas. Esse é o trajeto de todos os processos governamentais centralizados, podendo haver uma ou outra variação aqui e ali. Cada um desses itens merece uma abordagem específica, mas pela contingência do espaço, vou limitar minhas considerações ao “item c”.
O lugar de onde falo é o de um criador e mentor de projetos e programas de incentivo à leitura, entre os quais o Programa de Salas de Leitura das Escolas Municipais de São Paulo, entre todos o mais longevo e definitivo, a completar 30 anos em 2013, e o Prazer em Ler, do Instituto de Educação C & A, em parceria com o CENPEC, cujo início é datado de 2005..
Então, vejamos.
Considero que a distribuição de livros para as escolas tem crescido muito nestes últimos vinte anos. De igual forma cresceu a produção editorial e o número de casas publicadoras, bem como a entrada nesse mercado (publicações para escolas) de empresas estrangeiras. Deixou de ser uma mera distribuição de recursos pedagógicos para se transformar de uma só vez em um grande negócio e em política pública governamental para a formação de leitores. No entanto, o processo riquíssimo, que envolve muito dinheiro (público), carece aperfeiçoamento. Ouso fazer alguns comentários e sugerir alguns novos procedimentos.
Em primeiro lugar, temos que entender de uma vez para sempre que há muito mais relações entre arte e política do que pode supor nossa condição intelectual de criadores de cultura. E, nesse sentido, temos obrigação de estarmos atentos a todo o envolvimento político (uso aqui o termo “político” num sentido amplo) que a criação, produção, distribuição e consumo dos livros escritos e ilustrados por nós pressupõe: da escolha do que escrever ao consumo leitor, passando por condições de criação/produção e pelas relações profissionais. Assim, não bastar pensar e criar. Há um longo processo que nos envolve e que precisa ser constantemente problematizado.
Adiante. Os editais de inscrição dos livros para seleção e compra, e posterior distribuição às escolas, têm direcionado a produção editorial de tal forma que já começa a ser constante a prática de produção de livros específicos para atender aos editais. Não sendo selecionados, esses livros não são editados. Na prática, isso significa que as compras milionárias estão dirigindo a criação. Cria-se para atender o objetivo do edital, aquilo que os autores do edital querem que as crianças e jovens leiam. Um jeito disfarçado de escrever por encomenda.
Depois de inscritos, conforme os critérios, de forma e conteúdo, dos editais, os livros, aos milhares são “avaliados” e selecionados. Nunca se sabe quem faz este trabalho, como se faz e quanto se ganha para fazer isso. Podemos apontar inúmeros questionamentos nessa fase. Quem são esses “avaliadores e selecionadores”? Como foram escolhidos? Por que estes e não outros? Por que estes e não os futuros usuários e leitores dos livros? Como é feita essa avaliação e seleção? É possível ler, com isenção e com competência, dentro de um espaço de tempo exíguo, centenas e milhares de livros? Quais os critérios para essa avaliação? Há um parecer sobre cada livro (que não seja um parecer formal, feito com base em uma matriz e vazio de significado)? Os interessados podem ter acesso a esses pareceres? Quanto custa aos cofres públicos esse processo?
Enfim, para quem quer democratizar a leitura, o processo de escolha dos livros é muito autoritário. Parte-se pressupostamente da visão de que os educadores não têm competência para escolherem os livros que lerão e com os quais desenvolverão os seus projetos de formação de leitores. Em decorrência disso, há, pressupostamente, a necessidade de se contratar profissionais “especializados”, por conseguinte grandes conhecedores do que se produz no país, “sábios detentores de conhecimentos” que os educadores não têm. Uma postura equivocada.
Qualquer um de nós sabe que se aprende a escrever, escrevendo; que se aprende a andar, andando; que se aprende a nadar, nadando; que se aprende a pensar, pensando... que se aprende a ler, lendo. Certamente os educadores aprenderão a escolher os livros que lerão e com os quais trabalharão quando entrarem de cabeça no processo de escolha dos livros. Será participando ativamente da escolha dos livros e organizando o seu espaço de trabalho e projeto de formação de leitores, que todo educador crescerá como educador e como leitor. Ele tem que ter a autonomia (que o atual processo não permite) para escolher os livros que julgar mais interessantes, mais bonitos, mais próximos, mais ousados, mais regionais, mais isto ou aquilo. Ele tem que ser o protagonista da escolha dos livros (que o atual processo não permite). Essa autonomia e esse protagonismo devem fazer parte obrigatória e prazerosa do processo de manuseio, conhecimento, leitura, análise e seleção dos livros com os quais vai conviver no seu futuro pedagógico de formador de leitores.
Um dos argumentos em favor da seleção e compra centralizada é a facilitação da negociação e barateamento do custo. Facilmente descartado: a compra pode ser feita de modo centralizado e a escolha pode ser feita regionalmente, pelos futuros usuários/leitores. Já temos experiência exitosa nesse sentido: a seleção bilionária dos livros didáticos é feita pelos futuros usuários e a compra centralizada. E nem por isso se perdeu a qualidade dos livros assim selecionados; pelo contrário, a qualidade desse material tem melhorado muito.
Ainda há outro problema nesse processo: a emissão de pareceres vazios de significados é um deles, conforme aponta uma das associações de autores de livros didáticos. Isso tem que ser revisto. Todos devemos ter o direito de saber porque um livro não é escolhido, que razões sustentam essa proibição (mesmo que no mercado aberto ele seja sucesso de venda e de leitura)
Não vou fazer, neste breve espaço, considerações sobre o problema de compras centralizadas no Brasil, lobies e mau uso do dinheiro público, matéria fartamente divulgada na imprensa, pois não é o objetivo imediato. Mas pode ficar na pauta.
Nesse sentido, fazendo considerações finais, podemos avançar na direção:
a) de editais menos fechados fugindo da prática de determinar que tipo de livro pode ser inscrito;
b) criar um cadastro eletrônico de sinopses e avaliação assinada e responsabilizada de livros;
c) escolha localizada dos livros: e
d) compra centralizada.
Esse processo seria intermediário enquanto não chegamos ao processo totalmente democratizado de repasse do dinheiro para que as escolas/equipamentos escrevam os seus projetos, selecionem o material desejado e façam a compra diretamente, como muitos programas já existentes de “dinheiro direto para a escola”.
Razões como as expostas aqui, me levam a propor o movimento literário QUEM LÊ ESCOLHE, um exercício da autonomia e de liberdade na formação de educadores e leitores competentes .
EDSON GABRIEL GARCIA
Escritor e Educador
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