Marciano Vasques
NO BELO PRESENTE
O que é afinal a coisa que migra quando nossos pensamentos se ocultam nas dores entre as paredes de um silencioso jantar?
O que é afinal a coisa que as nossas vozes diluem na passagem dos mistérios das vidas que se perdem entre os corredores de uma casa?
Onde estará de fato o homem que se cala entre palavras que nas fibras mortas do tédio se dissolvem?
Para onde terá ido a alegria que invadia cada peitoril de cada janela enquanto a voz do rádio se espalhava nos quintais de folhas secas e nódoas matinais?
Quem terá cravado as perdas entre as faltas e o desamparo de abraços abandonados?
Fui assim, entre folhas secas e o baile suave de ventos entardecidos, na insondável busca de um lugar para sonhar. Estive na mastigação sem verbos e na fumaça das coisas que partiam, como partem em chuvas e mormaços.
Guardei versos, esqueci poemas, li, desci degraus, ladeiras, e na silenciosa queda do olhar atestei a fuga das coisas que são na beleza que plena de descaso e desatenção sempre dança ao redor.
Cresci, temi, arrisquei, estive entre os quebrantos, as sinas, e mulheres ralhando, feiras, mercados, nomes, portos, docas, mangues e poeira.
A vida é maior e ávida, e basta uma vontade burilando a quietude, uma necessidade de reencontros. Amo a chuva e tardes chuvosas jamais se vão. Ruas e caminhos são alados e quando o coração se põe no caminho, as fendas ressurgem, as festas ultrapassam as frestas e o poema risca o ar feito peixe dourado aquarelando o azul das manhãs transparentes.
Tudo talvez se perca, tudo talvez possa mesmo desaparecer feito areia entre os dedos. A mulher em silêncio cerzindo espantos, a casa moída entre fazeres vazios, passos ignorados, vozes miúdas entre mobílias e talheres buscando sílabas impossíveis entre permanências vulgares.
Não há dor maior do que aquela, a que se oculta, a que parte numa partida insensata. Onde estará a clareza? Para onde terá ido o que de melhor vi entre as parreiras, as revistas amontoadas, o azeite, o contorno geométrico da banha na pia, a inflorescência anunciando a manhã que jamais deveria ter sido desprezada? Para onde terá ido o que deveria ter sido conservado na mais lúcida vontade, na mais festiva conversa, no mais delicado vinho?
Entre o retrós, no caule liso das goiabeiras, no azul que se mesclava nos horizontes embevecidos de memórias e risos.
Tem um momento na vida em que a Literatura declara o seu sentido, a sua razão de ser, e tórax se abrem em luzes, e o riso retorna e a memória é transformada no belo presente.
Tudo pode ter sido entrelaçado nos palimpsestos e abandonos da alma, mas depois em plenitude retorna, no desabrochar da memória: a mãe da Literatura, o belo presente
2 comentários:
Regina Sormani21 de abril de 2011 15:42
Muitos pensam, mas, nada dizem. O Marciano, pelo contrário, diz tudo. Alma aberta, coração pulsando, palavra certeira.
Obrigada, caro amigo e poeta.
Bj,
Regina
MARCIANO VASQUES23 de abril de 2011 02:03
Que lindo e puro o que você disse!, Regina Sormani.
Obrigado,e que seu coração continue trilhando os caminhos da sinceridade e da poesia,
Um beijo,
Marciano Vasques
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