Eu, a janela e a chuva
Finalmente o dia amanheceu nublado, preguiçosamente cinza. Coloquei as cachorras para fora, antes que a grama molhada as impedisse da voltinha matinal. Alimentei os gatos e fui à sacada ver do alto o que estava acontecendo na praça do outro lado da rua. Os marrecos gritavam uns com os outros desesperadamente: “Corram, corram, a chuva vai chegar logo, precisamos encontrar um abrigo seco e seguro”. E, em segundos, desapareceram pelos túneis verdes de arbustos empoeirados, que estalavam ansiosos.
Abaixo, no meu jardim, contemplei mais uma vez – como tenho feito há dias – o pássaro bicudo e alaranjado que está florescendo: a linda estrelícia que, vagarosamente, desperta em seu ninho de folhas verde-azuladas. Quando as primeiras gotas caíram de uma nuvem faceira, que não conseguiu esperar pelas amigas, eu vi a estrelícia abrir o bico e saborear o puro líquido do regador celestial. Acho que Ele nos presenteou com flores para sempre lembrarmos que temos alma, que existe muito mais importância nas Suas coisas do que nas que criamos.
Entro no meu quarto, e por que não, como se adolescente fosse, volto a deitar-me, mas antes abro a janela e convido a paisagem a invadir meu dia como se fosse um quadro moldurado em madeira. Vejo a palmeira comprida por onde escorre a água da chuva, agora muito mais forte, e escuto a música torrencial que acusticamente me isola do mundo, transformando as paredes da casa em braços de mãe que me protegem.
Eu amo a chuva. Quando chove, os vizinhos param de gritar, os cachorros não latem, telefones não tocam e os jardineiros desligam os cortadores de grama. Pausa. Aproveito o momento de solidão para esquecer-me dos afazeres e das preocupações. Nada mais existe além de mim, da janela e da chuva. A água, que purifica e acalma, tem esse poder de tirar todas as minhas dores. O sopro do vento conduz as folhas que marcham pela rua como numa manhã de sete de setembro. Com suas mãos, o vento lava os pés do mundo, em total humildade. O sol hoje está descansando no colo de outros povos, que o veneram depois de muitas águas.
Aqui, o ar úmido entra em nosso corpo, levando uma sensação de bem-estar aos pulmões tão cansados dessa seca recente. Água. Bendita água!
Aos poucos, a chuva cessa, e a paisagem refrescada continua a sorrir. Escuto, agora, não mais a água escorrendo pelos muros invisíveis do meu mundo, mas carros que passam vez ou outra, um vizinho caminhando com o netinho que gargalha ao pular as poças no meio-fio e os pássaros a cantar. Um canto de celebração. Eles também são gratos por esse dia molhado, um oásis no meio da semana seca.
Simone Pedersen
Simone é escritora associada da regional paulista da AEILIJ
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