quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

SP: Quintas (38)

O TEMPO QUE O TEMPO TEM

“Barra-manteiga, na fuça da nega
Minha mãe mandou bater nesta daqui "

Brincadeiras infantis, cantigas de rodas, Monteiro Lobato. São coisas que trouxeram a felicidade para a minha infância.
O interessante é que eu era uma criança. E nada daquilo que mais tarde, bem mais tarde, de acordo com o espírito da época veio a se tornar politicamente incorreto, isto é, aquilo, um verso, uma palavra, um trecho literário, possa ter vindo então me chocar, ou me fazer estremecer... Nada disso ou daquilo, em hipótese alguma interferiu de forma negativa no adulto que eu viria a ser.
Trabalho com crianças, e convivo com elas. E observo que as cantigas resistem, com suas letras, e tudo o mais. Algumas são anônimas, outras são de compositores, que no "tempo que o tempo tem" tornaram-se anônimos e as obras ganharam a voz do povo, tendo o povo se tornado o autor, mesmo sem ter sido.
As cantigas resistem, e nenhuma delas prejudicam em nada a formação da criança. As tentativas ridículas de alterações das cantigas não pegaram e não pegarão, pois o que atinge o coração da criança de verdade, não tem jeito. Atravessará gerações. E certas cantigas ou certas brincadeiras desaparecem por si próprias, sem que haja um só decreto ou a vontade de quem quer que seja. Elas caem no esquecimento, pois a criança, que tanto deveria gostar da joaninha e do pirilampo, ela é antenada, tem antenas.
Excesso de pedagogia às vezes atrapalha. 
Uma ou outra cantiga apresenta versos que hoje me causam espanto, mas são poucas, o resto tiro de letra, e nada vejo de agressivo nem de prejudicial.
Uma delas, talvez a que eu mais ame, seja O Cravo Brigou com a Rosa. Que emocionante! Essa linda briga de amor continua conquistando o coração das crianças através do tempo que o tempo tem. Enquanto haver homens e mulheres, brigas de amor e ciúmes sempre existirão... Mas, espere um pouco! A cantiga não é violenta. Há sim violência e covardia em alguns provérbios populares, como o imbecil "Em briga de Marido e Mulher Ninguém Mete a Colher"... Bem patriarcal e covarde, é possível que talvez deixem a mulher ser espancada... Mas a cantiga, não. Que doçura! O cravo saiu ferido... É tão bonito. As crianças amam. Crianças ainda não são adultas.
Trecho literário? Nem pensar em censurar, mesmo que o espírito da época ou uma leitura raivosa ou ideológica ou simplesmente acadêmica, possam considerar agressivo...
Censurar, vetar, proibir livro? Essas coisas remetem a um pensamento perigoso. Não vamos desrespeitar a inteligência da criança...
Mas ela é sim desrespeitada. Porém, pelo que se produz contemporaneamente. Essa é a verdade. É certa programação da televisão, certas letras atuais de canções, certas baixarias, de agora, contemporâneas. Perdoe - me a sinceridade intelectual de muitos, mas querer culpar o que de melhor se produziu no passado na literatura infantil ou até mesmo as cantigas por comportamentos que possam surgir na criança é tolice, é desviar o foco do principal, daquilo que realmente deveria sofrer a intervenção honesta de toda e qualquer cidadania.
É o que se produz hoje que tanto mais me incomoda, isso sim é agravante.
Não me lembro de ter visto nas minhas andanças uma só professora ou crianças brincando de "Barra Manteiga" com seus versos originais, pois o tempo é sábio, e não precisa dos fiscais da moral de plantão. Tudo se ajeita, se me faço entender, mas, por favor, proibir livro numa biblioteca, numa sala de leitura, numa escola, alegando coisas que não podem com honestidade intelectual ser alegadas de forma ampla e definitiva, é complicado.
Quem edificou o mais impressionante diálogo com as crianças jamais havido neste país só merece o mais profundo respeito... O tempo que o tempo tem sinaliza que jamais diálogo igual irá surgir, ainda mais que nem cartas são escritas...
A sugestão de notas de contextualização histórica e cultural em alguns trechos de obra literária para a leitura da criança, só merece aplausos.

MARCIANO VASQUES

Leia TAQUARA-PÓCA  AQUI

Nenhum comentário:

Postar um comentário