quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

SP: Quintas (39)

A VERDADEIRA MAJESTADE


Por acaso eu lia Clarice Lispector quando pela primeira vez prestei atenção no cantor Roberto Carlos. E talvez por causa da Clarice ou por outro motivo que não vale vasculhar, ou talvez ainda porque a alma do acaso é o enigma, e ele, o enigma, não é propriedade dos supersticiosos, comecei a considerar curiosa a perturbadora presença do artista.
Mais tarde me dei conta de que a língua foi o gancho para que eu reparasse no ídolo. As críticas eram impiedosas contra aquele que era chamado de Rei da Juventude: tolices criadas pela mídia da época, como a de que os seus gestos eram femininos e podiam influenciar os jovens ou então que ele corrompia a língua, o idioma, com as gírias que propagava.
A resposta do artista foi uma canção chamada “Querem Acabar Comigo”. O episódio foi revelador. Há uma grandeza em se responder críticas com uma canção. Porém o que me interessou mesmo foi a questão da Língua, a história de se corromper o idioma. A Língua já se apresentava para mim como a verdadeira majestade.
Ela escoa, penetra em todos os vãos, é absoluta em seus discernimentos, na possibilidade de metamorfose. Não tem comando e não há lei que a estanque, é a vontade do povo, patrimônio do tempo, fonte que jorra das entranhas de uma nação.
Lembrei-me de um jardim, o único em que estive na minha infância, ou que ficou marcado na minha memória. Havia uma flor, seu nome: Dália. Alguém o pronunciou. Talvez ali tenha sentido pela primeira vez as profundezas do espírito da língua. Como há palavras que nascem dotadas de uma cativante sonoridade!
Mussolini, o ditador fascista, proibiu a Itália de usar o pronome Lei. A Itália usa adequada e rigorosamente todos os pronomes. O português é diferente, é mais maneiro. O acadêmico disse que a Língua Portuguesa é uma Língua inacabada. Penso que ela tem um jeito próprio de ser, um jeito tropical, eu diria. O caso dos pronomes é típico. Salvo em algumas regiões do Brasil, praticamente não se usa o pronome da segunda pessoa, o tu, e com a segunda pessoa se usa um verbo da terceira pessoa. Pode? Pode, é o jeito da Língua.
Pois bem, o fascista Mussolini proibiu o povo de usar o pronome Lei alegando que era feminino para ser usado por homens. Bobagem. A Língua é a Língua. Assim que o fascismo acabou o povo voltou a usar naturalmente nas ruas o pronome.
Tanto Mussolini quanto os críticos do ídolo da juventude se enganaram. Ninguém pode represar a Língua. Ela cuida de si mesma. A gíria, se tem sentido, se incorpora. O vocabulário se altera, as palavras mudam de sentido. Bacana é uma coisa numa época e na outra é algo diferente. E assim vai...
Em qualquer reino, ela, a Língua, é o poder maior. Sempre foi de fato o grande instrumento. É, enfim, a verdadeira majestade.

MARCIANO VASQUES 

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